Maravilha conversa com a curadora do Vão Livre, Debora Pill, responsável pela programação musical
No coração da Avenida Paulista, o Vão Livre do MASP é um espaço de forte simbolismo. Ao longo das décadas, tornou-se palco de experiências artísticas, ações educativas, manifestações políticas, passagens e encontros. É um lugar onde a cidade pulsa e arte e sociedade se cruzam de forma aberta e direta.
Em 2025, além de organizar sua programação em torno do eixo curatorial Histórias da Ecologia, que propõe reflexões sobre as interdependências entre corpos, natureza e vida coletiva, o MASP também recebeu a concessão para administrar oficialmente o Vão Livre. Desde o primeiro semestre, a instituição inaugurou uma programação regular que tem transformado o espaço em um ponto pulsante de cultura e convivência.
Essa perspectiva, que nos convida a repensar os vínculos entre seres humanos e ambiente, também dialoga com o desafio histórico da presença das mulheres nas artes. Segundo reportagem do G1, dados recentes mostram que apenas 21% dos artistas representados no acervo do próprio MASP são mulheres — percentual semelhante ao da Pinacoteca de São Paulo, que chega a 24%. Esse quadro revela um apagamento estrutural que, nas últimas décadas, começa a ser tensionado por curadorias, exposições e iniciativas que buscam ampliar vozes historicamente invisibilizadas.
Nesse cenário, a música se coloca como um território fértil de transformação. E, dentro dela, a discotecagem ocupa papel central: mais do que fazer dançar, ela constrói pontes, cria comunidades e dá forma a paisagens sonoras que revelam outras possibilidades de futuro.
DJ Julia Weck. Foto: Divulgação
É nesse contexto que a curadoria musical do Vão Livre, conduzida por Debora Pill, vem se destacando. Ao trazer DJs mulheres de diferentes estilos, pesquisas e trajetórias, ela tem feito do lugar um ambiente de protagonismo feminino e de experimentação musical.
Eu mesma, como DJ, tive a oportunidade de participar dessa programação e de vivenciar de perto o impacto desse movimento: uma cena que não apenas ocupa a Paulista, mas que reverbera para o Brasil e para a América Latina.
Ver mulheres DJs ocupando esse espaço público e simbólico é testemunhar uma renovação: a música, em sua potência coletiva, abrindo caminhos para novas dinâmicas sociais, culturais e afetivas. Para compreender melhor as intenções e desdobramentos dessa proposta, conversei com Debora.
Maravilha: Para além da programação, quem é a Debora Pill? Como foi sua trajetória até aqui, e qual é sua relação com música, cultura e curadoria?
Debora Pill: Nasci em São Paulo, sou mãe do Cauê [7 anos] e filha de trajetórias migrantes: minha mãe veio de Bom Jesus da Lapa, no sertão da Bahia; por parte de pai, tenho raízes no Leste Europeu (Sérvia e Romênia), além de ascendência indígena e cigana. Desde criança meu eixo principal sempre foi arte e corpo — muito esporte na escola, expressão, performance… —, e mais tarde, entendi que isso apontava para o que hoje chamo de mediação artística.
Estudei Jornalismo e, com uma visão crítica voltada à justiça social, me envolvi com movimentos sociais. Participei do Fórum Social Mundial (2004, 2009) e, em 2003, cocriei o Mídia Ninja, que nasceu como um coletivo de jornalistas interessados em direitos humanos e comunicação feita da rua. Ao longo dos anos, minha prática em comunicação se consolidou em rádio: fui correspondente da KPFK (EUA, no contexto do Democracy Now!), colaborei com a Rádio Pública Alemã e, no Brasil, tive passagem pela Rádio Eldorado FM, UOL, Red Bull Radio e outros. Mesmo quando a pauta era direitos humanos, eu sempre levava a música contemporânea não hegemônica para a conversa.
No setor privado, fui gerente nacional de cultura na Red Bull nos anos 2000 e liderei a Red Bull Music Academy no Brasil. Foi um período de criar do zero — bedroom producers, hip-hop, cenas emergentes… — e de traduzir o que acontecia aqui para a matriz na Áustria. Também atuei nas artes visuais (Sesc, galerias; fui studio manager d’Os Gêmeos) e, mais tarde, com Direito à Cidade, realizando projetos no espaço público.
No Instituto Goethe, criei o podcast Risca Faca, e aí uma ficha caiu forte: o meu trabalho é mediação. Em vez de colocar Alemanha e Brasil em diálogo, preferi evidenciar a produção anticolonial brasileira para públicos europeus. Quando nomeei essa prática, tudo se alinhou.
Em fevereiro fui contratada pelo MASP (Mediação e Programas Públicos) e, em março, reabrimos o Vão Livre com a performance histórica da Anna Maria Maiolino. Em seguida vieram dois coletivos LGBTQIA+ (Amem e Capoeira Para Todos) e, em maio, inauguramos a programação regular de DJs com a Carol Ueno. Desde então, seguimos semanalmente.
Foto: Barbara Aguiar/Divulgação
A proposta original de Lina Bo Bardi para o MASP sempre teve um olhar atento à cultura popular, à convivência, educação e à democratização da arte. Como a curadoria atual — musical e cultural — dialoga com essa visão?
Para mim, o Vão é praça: encontro entre cidade e arte. Por isso insisti em uma programação gratuita, regular e contínua — sem continuidade não há vínculo. Eu quis olhar primeiro para quem não estava ali. Com um instituto parceiro, levantamos dados e vimos baixa presença de mulheres e crianças; havia uma sensação de insegurança antes da reabertura. Mudanças simples e baratas fizeram muita diferença: iluminação, segurança e, acredite, cadeiras. As cadeiras criaram microambientes que as próprias pessoas passaram a organizar; isso muda a relação com o espaço e gera acolhimento.
A curadoria é multilinguagens — performance, música/DJs, cinema, teatro, circo, literatura, yoga, oficinas, infantil… — e costura com os temas do museu. Convidamos o público a criar junto, de modo comunitário. É exatamente o espírito da Lina: o Vão como uso social permanente.
Foto: Divulgação
Este ano, o MASP trabalha o tema Histórias da Ecologia, que propõe uma visão do ser humano como parte de um ecossistema interdependente. Como você enxerga a relação entre essa proposta temática e a curadoria musical que você tem desenvolvido?
O meu método foi começar observando que vidas já pulsavam no Vão; como mudava o público às terças (gratuitas), às sextas à noite (gratuito após as 18h), aos sábados e domingos; e quais limitações estruturais o edifício impõe (há três andares abaixo do Vão, então não posso promover movimentos ritmados de muitas pessoas ao mesmo tempo).
Isso me levou, naturalmente, às DJs, pela potência de construir ambiências sem transformar o espaço numa pista tradicional. Não foi um recorte a priori “só de mulheres”, mas, nome a nome, a pesquisa me mostrou que fazia sentido — pela excelência, diversidade de pesquisa sonora e, sobretudo, pela relação dessas artistas com o ambiente e o público. Com o tempo, fui ganhando lastro para ousar sonoridades. Hoje, já tivemos picos de 500 pessoas com o espaço operando no limite previsto.
Quando falamos em ecologia, penso em interdependência entre corpos, cidade e ambiente. No Vão, isso aparece como ambiência e como prática. Exemplos: fizemos uma expedição urbana com crianças no Parque Trianon para coletar elementos e criar; promovemos oficina de birutas com resíduos plásticos que viraram pipas gigantes, ativando o céu do Vão. Parece simples, mas a primeira coisa que quem chega faz é ir até a mureta para olhar o horizonte. Num miolo de prédios, o Vão vira respiro e reconexão.
Estamos trazendo debates como racismo ambiental e direito à cidade, com coletivos periféricos. Na música, a ecologia entra menos como “tema sonoro” e mais como cuidado com o corpo: uma escuta/pista onde eu me sinto bem, me movo e pertenço sem me sentir atravessada — especialmente para mulheres. Ambiências seguras se constroem tanto pela seleção quanto pela presença da artista lendo o ambiente e reagindo a ele.
Debora Pill. Foto: B+/Divulgação
Qual o potencial transformador de uma curadoria musical protagonizada por mulheres, especialmente dentro de uma instituição como o MASP? Você percebe reverberações disso na cena cultural ou em outros espaços?
Eu evito essencialismos, mas na prática ficou muito claro: as artistas que convidei trazem excelência, pesquisas diversas e uma postura de mediação muito forte — um olhar atento para o espaço e para as pessoas. Isso tem produzido ambientes seguros no sentido mais amplo: para o corpo, para a expressão, para a diferença.
Também tensiona um circuito ainda machista. Sigo priorizando mulheres porque ainda há ausências históricas a reparar e porque a resposta do público confirma o caminho.
Vejo crescer uma ética menos competitiva/extrativista e mais colaborativa: coletivos, selos, residências. Não é sobre “mulheres salvarem o mundo”, é sobre o que está acontecendo na cena hoje e sobre modos de produzir menos degradantes e mais coletivos.
Quais critérios você costuma considerar ao selecionar artistas e propostas para a programação?
Eu parto da observação do ecossistema do Vão (os públicos mudam conforme o dia/horário) e respeito os limites estruturais do edifício (há três andares abaixo; não posso promover vibração de muita gente ao mesmo tempo). Procuro artistas com presença/escuta para criar ambiência segura; valorizo excelência e diversidade de pesquisa. Também busco acesso e inclusão — mulheres, crianças, coletivos periféricos — e faço costuras com os eixos curatoriais do MASP.
Que futuro você imagina ou deseja para a cena musical e cultural no Brasil — e qual papel você acredita que a curadoria, enquanto prática artística, pode ter nesse caminho?
Desejo um futuro sem extrativismo cultural: menos competição predatória e mais colaboração, cuidado e fortalecimento coletivo. A curadoria, como eu pratico, é arte da mediação: costurar corpos, cidade e som; abrir espaço para novos formatos que dialoguem com a acústica do Vão (pequenos conjuntos de sopro e percussão; poesia slam; cantoras e compositoras…). Quero deslocar lógicas coloniais de poder e exploração rumo a convivências mais saudáveis e plurais.
Com a reabertura do Vão, mantemos sempre uma obra interativa no espaço. Neste momento, são duas gangorras gigantes [obra de Iván Argote, Eu e os Outros], que só se movem com mais de uma pessoa — um convite direto à força do coletivo.