Céu: “Estou mais solta e o show traz isso. Está bem divertido e quente”
Prestes a trazer sua turnê atual para São Paulo, cantora e compositora paulistana conversou com Jota Wagner sobre seu novo álbum, características geracionais, relações familiares e muito mais
A cantora paulistana Céu está de volta à estrada para divulgar seu último álbum, Novela, lançado ao final de abril. Dia 09 de agosto, a artista cola na Audio, em São Paulo, para o novo show que apresenta as nuances cruas, “brutas”, do novo lançamento. Maria Witacker Céu Poças, “do alto de seus 44 anos”, recebeu o Music Non Stop para uma conversa de forma aberta e tranquila. Sussinha. Falamos da hereditariedade musical, dos tempos modernos, da carreira e, principalmente, da proposição de seu novo trabalho.
As boas novidades do mundo da música geralmente trazem consigo rupturas. Em Novela, Céu se uniu aos produtores Pupillo e Adrian Younge para fazer um disco gravado na unha. Analógico, sem computadores, edições e filtros, como ela mesma nos contou. Assim, propôs um contraponto à tendência ultraprocessada das gravaçoes atuais.
O LP tem a sujeira das calçadas de São Paulo. A fumaça e a fuligem. É portanto, seu álbum mais urbano. Mas um urbano setentão, agarrado nas histórias de folhetim e nas trilhas de novela que, de certa forma, referenciaram a obra. E o melhor de tudo, passa longe do ambiente esterilizado, de limpeza laboratorial, que encontramos em tantos lançamentos. Sonoridade que Céu promete reproduzir na turnê de promoção, que passa por sua cidade natal agora em agosto.
Jota Wagner: Você é mais estúdio ou mais palco?
Céu: Agora você me pegou… Porque é uma coisa tão cíclica, vinculada a outra. Eu amo ir para o estúdio. São dias especiais para mim, sempre. Mas eu amo o palco também. Eu aprendi, especialmente com o tempo, a me sentir muito à vontade nele. Amo o ambiente que eu criei com essa banda e com todas as bandas que andaram comigo. Então, eu não sei do que eu gosto mais.
O que eu sei é que, quando eu começo a fazer um disco novo, é porque alguma coisa dentro de mim quer falar alguma coisa. Não é aquela coisa de “você precisa, você tem que fazer um disco e estar nas paradas”. Isso eu nem sei muito fazer.
Você chega no camarim, olha para a banda e fala “gente, foi uma puta show”. O que precisa ter acontecido?
Tem uma alquimia que acontece quando o show é bom. Quando a massa do palco, a sonora, energética e vibracional mistura com a do público. A gente vai virando uma coisa única. Eu sei que parece supersubjetivo e doidão, mas isso acontece. E quando acontece, é incrível.
Falando para quem acompanha a Céu desde o começo, o que esperar de novo com os shows do Novela?
O Novela, por ser um disco gravado de forma totalmente analógica, sem computador, tem um som quente, grande… Tudo o que vem do analógico acaba tendo um encorpado diferente. E acho que, por a gente ter tomado isso como ponto de partida, também é do show. Claro que tem samples digitalizados, a orquestra e tal, mas, mesmo assim, comparando com meus outros discos mais digitais, o Novela vem maior, por causa desse som analógico.
Tem uma vibe muito live, interessante. Pela minha maturidade, no alto dos meus 44 anos, eu aprendi. Estou mais solta e o show traz isso. Está bem divertindo e quente. Dançante e pulsante.
É o primeiro disco que você faz dessa forma totalmente analógica…
É o meu primeiro disco 100% analógico. Eu sabia o que era isso de ouvir falar, porque na minha chegada, em 2005, já tinha uma grande revolução tecnológica acontecendo. E eu fui sempre muito ligada à música urbana, ao rap, aos beats. O primeiro disco tinha a figura do DJ. Esse sempre foi o meu jeito. No Novela, eu quis trazer a minha linguagem.
Continuo apaixonada por beats e tudo o mais, pela música de rua e também do folclore. Mas houve essa premissa do Adrian, um dos produtores do disco junto com o Pupillo: vamos fazer tudo junto, sem trabalho com o computador. Gravamos tudo ao vivo.
Tudo o que está lá é 100%. Se você ligar o volume no talo vai ouvir vazamento de voz pra caramba, porque não tinha monitoração. Foi a primeira vez, e foi muito transformador lidar com os próprios erros. Não tínhamos muitos takes, não tinha “refação”. Se ficou bom, ficou. Se não ficou, amiga, deixa lá.
A música, claro, bate em cada pessoa de um jeito diferente. Eu estava ouvindo Raiou — a melhor do disco, na minha opinião — e me veio um mood, sei lá, de copo de uísque em um bar da Av. São João às 03h da madrugada. Algo meio cinematográfico…
Ela tem uma letra quase motivacional. “Vai, vai, anda. Se não for você, quem vai ser por você?” A gente passou por momentos muito sinistros. Na verdade, estamos passando. Eu diria que estamos num momento crítico da humanidade. Eu tenho duas crianças, penso muito sobre tudo isso. Raiou está um pouco nesse lugar.
O Antônio Neves é um frequentador lá de casa. Um grande músico, um cara que eu admiro muito. Ele mandou uma ideia harmônica. E eu faço música de todos os jeitos. Às vezes vem uma harmonia, eu faço um símbolo, uma melodia. E dessa vez veio algo que, se você olhar bem, é quase um samba, uma bossa nova. Tem a grandiosidade do sopro, que vai lindo… Resultou em algo que empurra a música e tem essa coisa que você falou, né? Cinematográfica.
As trilhas de novelas dos anos 70 e 80 fazem muito sucesso entre os colecionadores. Você costuma ouvir esse tipo de coletânea?
Eu ouço. É o tipo de lugar que eu gosto na música. Meu sonho é um dia, daqui a muitos anos, alguém estar procurando meu disco pra samplear. Gosto disso. Faço muita música pensando nisso também. É o meu jeito de conceber, de imaginar a estética, a história.
Você é filha de arranjador, né?
Meu pai é músico, arranjador. Ele fez todas as músicas do Balão Mágico. Está por trás dos grandes do primeiro boom do mainstream brasileiro.
E você tem uma relação muito forte com os arranjos. Foi algo consciente?
Eu costumo dizer que, na minha família, a melhor forma de a gente se comunicar é através da música. Meu pai conheceu minha mãe no bar de música que ela tinha. Até meu bisavô era músico. E eu me sinto uma pessoa meio antiga, sei lá… Acho que foi até por isso que eu me encantei com o trabalho do Adrian. O conheci fazendo o Caravana, meu terceiro disco. Acho que é uma mistura do meu ser que trago dos meus pais. O Adrian e o Pupillo me conhecem, sabem qual o jeito que eu gosto de navegar. Eu vou percebendo o que eu quero, e muito provavelmente a gente vai chegar. Não é fácil. Sou supercontroladora, mas não tenho muito controle nessa hora.
Quando seus pais sacaram que você estava entrando mesmo para viver de música, teve apoio? Ou foi assim: “não faz isso, filha, pelo amor de Deus!”?
Foi essa segunda aí.
O Novela foi composto em um momento só da sua vida?
A primeira música que eu compus foi Reescreve, que é meio decolonial. Eu tava pensando nisso, lendo livros sobre isso, foi durante o começo da pandemia. Escrevi essa canção e gostava dela, da melodia. Aí o Marcos Valle harmonizou. Muito chique, né? Só que quando a gente foi gravar, os meninos levaram para outro canto, na produção. Foi uma canção ali, do começo da pandemia. A partir dela, outras coisas foram surgindo.
Espiritualmente falando, quando é que acaba o ciclo de um disco? O que faz você querer músicas novas?
Não vou mentir, tem a questão mercadológica também. Eu vivo 100% da minha arte. Tenho que trabalhar, fazer show, fazer meu corre. Há uns anos eu podia demorar mais porque a gente rodava muito com cada disco.
Hoje, as coisas estão muito rápidas, muito difíceis para o artista. Somos pressionados a ficar criando coisa nova, gerando o famoso conteúdo o tempo todo. Isso, de ficar tendo mil ideias e pouco foco em algo sólido, esvazia muito a arte. Claro que tem o outro lado. Todos os lados são lados. Tem gente que está fazendo de sua arte a própria pulverização. Vai fazendo microcoisas e tal… São linguagens. Eu venho de uma geração em que você podia saborear algo por mais tempo. Hoje, a coisa está nos singles. O mercado pede. Para mim é muito difícil.
Isso estava me vindo à cabeça agora. A Céu não é uma garota de singles, né?
Não sou, eu faço um ou outro, mas não é a minha natureza. Minha natureza é fazer disco. Então eu sofro.
Tem um comportamento comum, de artistas mais novos do que você, de trocar tudo de um disco para outro. Mudar de estilo musical, dar uma guinada… Como você vê isso?
Essa é uma conversa interessante. Porque uma coisa é você ser o David Bowie, que se misturava com a arte, com a inquietude, com o desconforto e com os desejos para vivenciar de modo abissal a sua própria arte, e entregar coisas que têm diversas linguagens. Ou um Serge Gainsbourg; artistas que transitam nesse lugar meio camaleônico. E outra coisa é você construir. Isso é uma construção de uma história, uma curva que você fez, o que você quer trazer para sua vida. Outra coisa é você desconstruir e começar do zero de novo. Então, eu acho que, entendendo esses propósitos, há uma juventude com muita pressa. A internet dá uma pifada na cabeça da galera.
Uma ansiedade exagerada, o lance da rapidez…
Eu acho que a coisa da degustação, de você aceitar a frustração. De você ter corpo para lidar com frustrações. Essa geração está com muita dificuldade em relação a isso. Eles remediam facilmente com um band-aid, e isso afeta o aprofundamento. Algo como, “faço algo, não gostaram? Então não vou estar mais aí”.
O Novela, por essa questão de não ter o conforto do filtro, é um disco de muita vulnerabilidade. Eu me botei muito à prova. Me confrontei, porque não tinha como consertar nada.
Então, no final das contas, acaba sendo um disco quase político, em relação a tudo isso o que você trouxe na entrevista. De não ter computador, de ser bruto.
Céu, você é paulistana e morou em Nova Iorque, mas traz uma imagem de “mateira”, da natureza. Novela é seu disco mais metrópole?
Será? É… mais ou menos, sim. Eu acho que sou sempre essa mistura, sabia? O primeiro disco trazia beats urbanos e tal. Mas não sei. Achei interessante seu ponto. Jogo para você a pergunta, porque essa sou eu. Tenho mesmo essa dualidade. Sou paulistana, morei em Nova Iorque por um ano e foi muito importante porque eu comecei a escrever. Mas sou aquela paulistana que, quando tenho um minuto de folga, corro para o mato.
Nova Iorque te trouxe algo, tanto na forma de fazer música, quanto na de ver o trabalho na música?
Nossa, foi o ano mais produtivo da minha vida! Fui para lá estudar jazz e escola vocal, e voltei compositora. Nada a ver com o que eu tinha em mente. Voltei escrevendo, fazendo minhas próprias músicas e isso veio de lá, por causa do rap. Eu morava em um bairro latino, porto-riquenho e negro. Fiquei muito apaixonada por música urbana.