Coletivo negro e LBGT criado em Salvador terá um festival para 12 mil pessoas no Memorial da América Latina. Mas a BATEKOO é muito mais do que uma empresa organizadora de eventos
Me sento para a entrevista com Mauricio Sacramento e Artur Santoro, os criadores da BATEKOO, e a imagem que chega através da tela é a primeira de muitas e gratas surpresas que viriam naquela tarde de terça-feira. Ambos são jovens garotos cheios de vida. Tranquilos, mesmo a poucos dias do maior evento de suas carreiras.
O segundo BATEKOO Festival acontece neste sábado, 07 de outubro, no Memorial da América Latina, em São Paulo. O line up é estrelado. Vai de Gabi Amarantos a Liniker e Sampa Crew (veja a programação completa no serviço, no final da entrevista). Uma mistura completamente condizente com as origens do projeto, e também da comunidade que o cerca.
A curadoria é quase psicanalítica. Ela mescla o anseio pelo pertencimento à favela e suas nuances com o grito reprimido da comunidade LGBTQIAP+, que ali cresce. Tudo isso com os punhos cerrados levantados para o alto, orgulho negro, mas com um sorriso de celebração no rosto.
“Em termos de mensagem, a BATEKOO é muito essa plataforma pensante que está sempre ali, comprometida em criar espaços de felicidade para a nossa comunidade“, me contou Mauricio Sacramento, o Mau.
Cientes da missão que tinham em torno do que, para os leigos, era “só uma festa”, a dupla rapidamente envolveu a sua comunidade em um hub de ações transformadoras. Mantém a Casa BATEKOO, em Salvador, a Escola B, com ações formativas, e estão presentes em sete grandes cidades brasileiras. Ações que chamaram a atenção do mundo, e levaram a crew para turnês internacionais.
Tudo isso em apenas nove anos de vida (descontando a pandemia, dá menos que sete!). Qual o segredo? O que se passa na cabeça dos dois? Será que têm noção do gigantismo de suas almas?
Para saber, leia a entrevista abaixo:
Jota Wagner: Sábado tem festival com expectativa de 12 mil pessoas no Memorial da América Latina. A trajetória de vocês é meteórica…
Artur Santoro: A gente já estava fazendo festa para cinco mil pessoas antes. Então, somos prudentes, começamos a chamar de festival a partir das dez mil.
Maurício Sacramento: O que foi, para nós, uma virada de chave. Mesmo porque, já estávamos fazendo festas no Brasil inteiro. Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, BH, Brasília, Recife e Santos.
Artur: E enfim, né? A gente já estava mesmo nesse fluxo de fazer eventos, mas acabou que o festival se tornou esse grande no último ano.
Às vésperas do festival, você devem estar numa loucura…
Artur: Comparando com o do ano passado, acho que a gente está até um pouco mais tranquilo em relação à organização. Apesar daqueles imprevistos aí de produção que sempre acabam surgindo, né?
Mau: Mas sim, eu acho que houve essa coisa realmente muito meteórica, muito rápida, que eu acho que só realmente cai a ficha quando a gente está lá, no evento, para entender a dimensão do que estamos fazendo e movimentando.
Quanta gente está de envolvida com vocês nesses rolês?
Artur: Varia muito, porque a gente acaba tendo uma contratação por projetos. Agora, no festival, a gente tem um núcleo de produção, de três pessoas centrais. Ao todo, a gente vai ter perto de cem pessoas na equipe.
Mau: Praticamente 100% pessoas negras sendo contratadas, movimentando e construindo, produzindo aí.
Falando nisso, a BATEKOO vai muito além de um evento. É um projeto com um caráter político, antropológico até…
Artur: Total! Um dos principais pontos que a gente pode citar é a Escola B, que é o nosso projeto educacional. Foi criada em 2018…
Mau: …a partir dessa percepção da BATEKOO como uma plataforma de conexões, de encontros, de fomento cultural. De o quanto a gente poderia expandir e transbordar essa mensagem.
Artur: Enfim, essa ocupação de espaços, tanto no setor de entretenimento quanto no setor publicitário, o quanto a gente também poderia reverter isso para nossas comunidades. Então a gente criou a Escola B. Saiu ontem [03/10], aliás, a lista de selecionados.
A gente vai ter um curso de produção artística para eventos culturais, que vai acontecer nesta semana, com visitas ao backstage, ao espaço da montagem, para também conseguir proporcionar pros estudantes um pouco dessa experiência real do que é produzir um festival.
Mau: A produção tem muito disso, de você aprender acontecendo, então isso vai rolar e a gente também vai conseguir liberar algumas bolsas para as pessoas trabalharem no sábado.
E esse projeto está baseado em São Paulo?
Artur: Não, não necessariamente. A gente faz em vários locais. Um exemplo é Casa BATEKOO, que acontece em Salvador, já há dois anos. Lá, a gente faz ações da Escola B presencialmente. Estamos, principalmente, em São Paulo e Salvador.
Fazemos também muita ação digital. Chamamos professores do país todo para conseguir atender a toda essa nossa comunidade, que acaba sendo nacional e até internacional.
Como todo esse trabalho nasceu? Foi uma coisa planejada ou, sei lá, caiu um raio de ideias na cabeça?
Mau: Foram organizados, planejados… Assim eu consigo até perceber um pouco da inteligência que eu precisei ter, né? (Risos). Junto com o Mirante, também, que participou desse processo.
Na primeira edição, a ideia era só fazer a parada. Você vai fazendo e aprendendo os nomes das profissões, dos cargos, das funções. Depois, você para e percebe o que você fazia no passado, sem saber. Vê que rolou um super um trabalho de pesquisa, um trabalho de criação de narrativa ali. Criativa, de…
Artur: Branding! (Risos)
Mau: Design, principalmente, também foi uma coisa muito forte, de comunicação visual.
Artur: Mas em termos de negócio, foi zero organizado, porque foi um paradigma muito através de um propósito, sabe? Inicialmente, não foi pensado em ser rentável.
Mau: Tipo, eu até queria ter sido uma pessoa mais ambiciosa, hoje. Acho que eu estaria mais…
Vocês são dois românticos!
Mau: É! A primeira discussão, sei lá, a semente que foi plantada em mim, foi muito nessa coisa de como transformar minhas dores em processos de cura, né? E também uma maneira de eu me comunicar com o mundo, porque eu sou uma pessoa muito tímida, introspectiva. Isso foi crescendo, e então eu acho que eu consegui [através da BATEKOO] acessar um lugar muito íntimo da comunidade preta. É um lugar tão íntimo que fez muita gente vestir a camisa.
Artur: Porque o que é interessante, por causa da favela, é a troca que a gente teve sempre com as pessoas que frequentavam a festa.
Mau: Com as pessoas que percebiam que aquele espaço é verdadeiro, que era um espaço, genuíno, né? Acho que essa foi a parada que ajudou muito a gente conseguir essa confiança.
Artur: E essa grande rede que a gente tem até hoje.
Nesse crescimento, vocês tiveram uma mentoria de alguém, um apoio?
Artur: Não! Nossa…
Quando não é assim, a gente aprende errando, batendo cabeça…
Artur: É, foi errando muito. Eu, por exemplo, tinha pouco esse debate de empreendedores e tal. Por mais que víssemos essas coisas de aceleradoras, de mentores, para nós não rolou nada disso no começo. Hoje em dia, temos muitos parceiros que ajudam a criar essa estrutura. A gente sempre foi uma equipe pequena. Hoje em dia é um pouquinho maior.
Mau: Fazíamos mil funções. Desde carregar a cerveja, vender no bar, encher a geladeira… A gente teve que fazer para as coisas acontecerem, né? Hoje em dia, depois da luta, a gente tem estrutura, mas no começo foi assim, na cara e na coragem.
Como vocês lidam com a consciência de estar fazendo algo que será uma referência para outras gerações? Vocês se preocupam com essa responsabilidade do que vão dizer ou fazer para esse público que está chegando na BATEKOO?
Mau: Acho que a gente tem essa preocupação. Em determinado momento, percebemos mais o peso do que estávamos fazendo. Principalmente no festival, que é o espaço onde a gente também consegue apresentar uma curadoria mais ampla. Eu acho que a gente tem também a preocupação de trazer nomes mais velhos. O Seu Osvaldo, por exemplo, que é o primeiro DJ do Brasil, tocou no ano passado.
Temos muito respeito por quem veio antes. A gente sempre fala que não inventou a roda. Muita galera preta, muitos coletivos fizeram festas e rolês antes da gente, com esses recortes LGBTs de polaridade, de corpo, de maneira mais explícita. Somos parte dessa construção histórica, de celebração e de valorização negra. Então, cada vez mais, tem caído um pouco o peso da responsabilidade.
Artur: Já rolam muitas pesquisas universitárias sobre a BATEKOO. Toda a semana recebo e-mail pedindo uma entrevista para TCC, mestrado, doutorado… A gente sabe que vamos ser revisitados, para muitas pessoas, como referências. Em momentos assim, a ficha vai caindo.
Uma preocupação muito grande dos organizadores de festivais na montagem do line up é o retorno que o artista vai trazer com a venda de ingressos. Só que vocês tem uma comunidade toda por trás. Vocês se sentem mais livres para fazer a curadoria?
Mau: Na curadoria, a gente pensa muito nessa teia que a gente sabe que vai ter. Vai ter linhas em que artistas diferentes vão se encaixar. Tem a parte que traz, por exemplo, essa linha mais histórica. Mas é importante também trazer esses artistas que têm um retorno de venda, claro.
Artur: Eu acho que a gente tem eixos curatoriais que vão ampliando isso. No ano passado, O Kannalha foi uma das atrações, pagodão baiano. Sabíamos que a maioria do público em São Paulo não conhecia tanto e que não teria conversão de vendas, mas foi avaliado como o melhor show de todo o festival.
Se alguém que chegou agora no Planeta Terra perguntasse para vocês o que é a BATEKOO, o que diriam?
Artur: Essa é a pergunta mais difícil de responder. É muito complexo de explicar…
Mau: Vou tentar usar um pouco do lema que a gente está usando esse ano, né? A BATEKOO é a nossa vingança…
(Interrompo Mau com uma gargalhada, surpreso pela genialidade do lema)
Mau: Não é piada, não, é verdade! É um projeto voltado para pessoas pretas, com a empresa 100% preta! Criamos possibilidades positivas do que é ser negro.
O que a gente cria é contracultura, o caminho contrário. Tipo, vamos falar sobre o racismo se conectando, se reunindo, se aglomerando. Assim, acho que a nossa maior vingança, ao invés de ficar adoecendo com o que o racismo faz com a gente, é celebrar.
Não diminuindo o trabalho de outros coletivos ou de outras cabeças que pensam diferente. É muito importante que a gente tenha consciência do que nós somos e de como a sociedade nos trata. Mas nem todo mundo consegue ainda acessar esse lugar de consciência.
Um jovem de periferia nem sempre nasce sabendo que é preto, sabendo por que ele é sempre seguido num mercadinho ou num shopping… E aí eu acho que quando a gente começa a falar sobre o racismo criando caminhos positivos do que é ser negro, é uma vingança muito forte.
E enfim… Em termos de mensagem, a BATEKOO é muito essa plataforma pensante que está sempre ali, comprometida em criar espaços de felicidade para a nossa comunidade.
SERVIÇO
BATEKOO Festival no Memorial da América Latina
Sábado, dia 7 de outubro, das 12h até 22h
Atrações: Liniker, DJ Gabriel do Boreal, Grupo Revelação, Sampa Crew, Mu540, Tasha & Tracie, Gaby Amarantos, Kyan, th4ys e Shevchenko & Elloco
Ingressos: de R$65 até R$ 240 via Shotgun
Av. Mário de Andrade, 664 – Barra Funda | São Paulo – SP