Paulo Tessuto sempre se distinguiu pelo humor e pela liberdade em tocar nos temas sociais desta década sem problematizar, sem precisar se direcionar a seu público pelo discurso formal. Sua ironia faz qualquer texto, inclusive este parágrafo, parecer desnecessário.
Sem o verbo, a música instrumental pode ir além da canção, mas também pode ser facilmente esvaziada e descontextualizada, principalmente em tempos de massificação. Ao que parece, muitos dos ouvintes recentes desconhecem as origens negras, LGTTBs ou periféricas da pista. É nesse momento que a figura de Tessuto e seus go-go dancers alienígenas tornam-se essenciais. São imagens vivas que se conectam à história da pista e nos remetem aos tempos em que o techno, a house e seu público eram motivo de deboche diante dos gêneros acústicos, tonais ou de versos literais – quando o clube era o único lugar onde se podia SER ou existir completamente.
Há pouco tempo, quando Tessuto voltou de sua turnê na Europa, percebeu que algo havia mudado (sem dúvida, existe uma grande tensão mundial que nos comove e faz com que queiramos nos manifestar). Ele resolveu fazer um paralelo entre o que viu lá fora e o conservadorismo que se revela nas redes sociais. O DJ/produtor, então, explicitou o que sempre disse por imagens, mensagens subliminares e pelos temas de suas festas desde 2010 »
Senŏide » Logo que chegou de Berlim, você criticou pelo Facebook o descaso com os ministérios da Cultura e o da Educação. Você escreveu:
<< […] Estou muito deprimido e gostaria de lembrar de algumas coisas pertinentes.
Para mim, o que acontece nos Ministério da Cultura e da Educação é o MAIS FASCISTA de todos os atos. Demonstra ausência de sensibilidade. Algo muito perigoso.
Não é só no Brasil que estamos tendo regressões de diretos trabalhistas e humanos. É no mundo inteiro que a onda NEONAZIFASCISTA esta tomando conta. […]
Até na Alemanha existe uma ascensão de um movimento ULTRA direitista que já tem estrondosas taxas de representação dentro do país inteiro.
SIM, estamos em choque e com muito medo do que está acontecendo no Brasil porque não se trata apenas de um ato político: estão semeando a maldade, o ódio, a intolerância e a desigualdade às próximas gerações.
Estão tomando o que é nosso.
Como artista me sinto OBRIGADO a me posicionar.
O Brasil saiu do mapa da fome, uma urgência urgentíssima, a maior de todas, e a notícia não interessou. Não reverberou. Não foi comemorada. Mas, nem por isso, enquanto o País se empenhava para sair dessa lista vergonhosa, outras áreas mereciam o ostracismo.
Existe um elemento que nos diferencia dos demais existentes: nossa capacidade de interferir, criar e recriar o mundo. Somos seres culturais. E isso é uma prioridade para quem sonha com a emancipação popular.
A Cultura e a Educação são elementos decisivos nisso. E desprestigiá-las é um grande erro – ou uma estratégia bem pensada por quem deseja formar mão-de-obra barata, que apenas trabalhe, volte para casa e não ouse questionar o status quo.
Aliás, existe um método que é empregado em nível nacional pelas forças obscurantistas, especialmente as bancadas teocráticas do seu município e do seu estado. Eles desejam destruir todos os equipamentos sociais da sua cidade.
Atuam como forças do proibicionismo, querendo fechar aquela pista de skate, impedindo emendas aos equipamentos de cultura e satanizando a juventude. E para quê? Para sobrar apenas suas igrejas para a comunidade socializar.
Não adianta ter um povo indócil aos políticos se ele não tem senso crítico suficiente para perceber quando está sendo gravemente manipulado.
Então, sim, Cultura e Educação são grandes prioridades! >>
Senŏide » O que você viu em Berlim que te fez querer publicar este texto no Facebook?
Tessuto » Na verdade, quando fiz este post, me referia às coisas que vi na viagem como um todo, não somente Berlim. Em, geral os estados tiveram uma mudança drástica de comportamento. Em Berlim, algumas pessoas comentaram comigo que foram assaltadas na rua, o que eu nunca havia ouvido falar até então. Também percebi que existem pessoas morando na rua.
Senŏide » Seriam imigrantes as pessoas em situação de rua?
Tessuto » Não sei te dizer ao certo se eram imigrantes. Aparentemente sim. Alguns eu vi num prédio ocupado. Reparei que também houve inflação desde a última vez que estive lá.
Há um partido forte de direita, anti-imigração, o AFD, que já possui representações em praticamente 80% do país. Se a gente for considerar a história recente da Alemanha, o que acontece agora novamente é muito chocante. O pior é que hoje isso acontece em muitos países, na França, no Brasil. O sistema capitalista está ruindo.
Senŏide » Os clubes estão mais vazios?
Tessuto » Continua igual.
Senŏide » É possível perceber se simpatizantes do nazifascismo frequentam os mesmos lugares da cultura clube berlinense?
Tessuto » Aparentemente, não. Até aqui no Brasil há muitas pessoas que têm ideias meio fascistas e nem sabem disso. É natural o convívio com pessoas de todos os tipos em festas no mundo inteiro. Em geral, as pessoas que frequentam festas de música eletrônica têm a mente mais aberta, principalmente lá.
Senŏide » Percebeu alguma mudança na música de lá por causa do clima tenso?
Tessuto » Me parece que é algo sutil que vai acontecendo aos poucos.
Senŏide » E isso influencia o que você toca?
Tessuto » Com certeza. Nunca fui de tocar apenas um estilo. A história da minha carreira conta o que eu passei a cada momento.
Senŏide » No Brasil, os machistas, os racistas, os homofóbicos sempre estiveram presentes, mas agora, por causa das redes sociais, percebemos que estão mais próximos do que antes imaginávamos. É ótimo ver que você se posiciona contra isso enquanto muitos se calam.
Tessuto » Muitas vezes as pessoas têm medo de se expor, porque isso pode influenciar o trabalho delas, o círculo de amizades. Porém, quando não há diálogo, o atrito pode acontecer de repente e pior.
Senŏide » O lado positivo é que você acaba atraindo gente que pensa como você.
Tessuto » Isso é bom.
AS FESTAS CARLOS CAPSLOCK E MAMBA NEGRA
Senŏide » A montação feminina virou uma marca sua. Por que você acha que assim há mais feedback do público?
Tessuto » Talvez porque ninguém esperava algo do tipo. Eu sinto que as pessoas admiram, respeitam e gostam, se divertem. Acham legal eu ter uma namorada e me vestir assim, independentemente se eu já tive relações homoafetivas ou não. Em Berlim também gostam.
Tudo o que eu faço, num primeiro momento, relaciona-se à contracultura e à mensagem subliminar, não são pensadas como ativismo, são lances que surgem espontaneamente.
Senŏide » É mais estético do que político.
Tessuto » A princípio sim, mas o teor político acaba aparecendo também. Não tem como desassociar.
Senŏide » Em que momento houve uma virada na sua carreira?
Tessuto » Quando eu venci os meus medos e prisões que a sociedade nos impõe – sobre imagem, principalmente, e a maneira de se comportar.
Lembro que em 2010, quando começou a Carlos Capslock, eu achava a cena careta, nem fumar se podia mais.
Senŏide » Lembrei agora que numa festa você tocou totalmente nu!
Tessuto » É, esse foi o momento em que eu toquei o botão do foda-se.
Senŏide » Foi mesmo uma abertura nas “regras sociais” da cena noturna de SP.
Tessuto » Parecia que antes as pessoas se comportavam de modo muito discreto na noite, era uma coisa meio chic, o lance do camarote, de conseguir pulseira, de quem é VIP… era muito carão! As pessoas precisavam se libertar disso, eu me libertei disso e decidi passar a ideia adiante.
Senŏide » É como se você trouxesse uma influência punk ao contexto da música eletrônica.
Tessuto » Posso se dizer que sim.
Senŏide » Quem é a Carlos Capslock hoje?
Tessuto » Sou eu, os DJs e produtores Henrique D’Marte e Guilherme Picorelli do Fractal Mood – o Picorelli é o engenheiro de som; o L_cio toca e faz a curadoria de DJs junto comigo, o line-up da festa. A iluminação é com o Paulinho Fluxus e o Diogo Terra; e mais um advogado e o sistema financeiro associado a Carlos Capslock, temos também o Alex Honda que entra nas performances assim como sua marca de roupa, temos mais uma produtora entre muitas outras pessoas. Isso sem contar o público, que é o principal foco. Nossos residentes são: Fractal Mood, L_cio, Paco Talocchi, Lucas Arr e Tessuto aka Carlos Capslock.
É assim desde a nossa passagem pelo Cine Marrocos no inverno de 2014. Quem bolou esse sistema foi a Laura Diaz e a Carol Schutzer, da Mamba Negra, e nós aplicamos. Juntos nós fazemos a produção de todas as festas, que começa cerca de um mês antes. Com seis meses de antecedência já começamos a pensar nas seguintes.
Senŏide » Que dica você daria para quem está começando a produzir festas?
Tessuto » Autonomia e identidade própria, mas o principal é você ter bom gosto e ser uma pessoa sensível. O dinheiro virá naturalmente. É bom lembrar que os três primeiros anos da festa foram difíceis.
TESSUTO PRODUTOR MUSICAL + NOVO SELO » MEMNTGN
Senŏide » Você começou produzindo um tech house de influência árabe com o Renato Patriarca em 2014, não foi?
Tessuto » Na verdade eu produzi a track, que acabou saindo sob o codinome Carlos Capslock e ele mixou e masterizou para lançar pelo selo dele, o Scandalo, com remixes de Dada Attack, Psilosamples e Rotciv. Lancei outra há mais ou menos um mês em parceria com Bruno Palazzo, também pelo Scandalo. E no começo de maio saiu ‘Brghn No Pade’ pelo selo ‘Thousand’ do Lucas Arr. Teve um remix pro Marco Blasquez & Holocaos que saiu há uns dois anos.
Senŏide » Agora você está produzindo com o L_cio e a Cashu…
Tessuto » Lançamos no começo de junho a primeira música do nosso selo, o MEMNTGN, mas não estamos produzindo juntos, fizemos apenas essa colaboração.
A música do MEMNTGN se chama ‘Traumatesado’, tem vocais meus na versão original e foi produzida por eles enquanto eu estava em Berlim. Em breve vou lançar um remix para o belga Fabric Lig. Logo sai pelo nosso selo uma série chamada QDUT, junto com outros produtores. Depois vem o do Pedro Zopelar e, em seguida, o meu EP.
link de streaming » L_cio/Cashu featuring Capslock _ TRAUMATESADO _ [MEMNTGN]
http://www.junodownload.com/products/l-cio-cashu-capslock-traumatesado/3072746-02/
Senŏide » E o MEMNTGN está aberto para receber músicas de novos produtores?
Tessuto » Por enquanto não. A princípio vamos priorizar os artistas que criaram o selo. Nós convidamos outros artistas para participar do QDUT, o primeiro tem Sebastian Voigt e The Swift, que são residentes do Salon Zur Wilden Renate em Berlim.
Senŏide » O QDUT é uma coletânea?
Tessuto » São algumas músicas originais mais os remixes.
Senŏide » Quem as masteriza?
Tessuto » O Jörg Burger da Kompakt Records de Colônia, eles também cuidam da distribuição.
Senŏide » Que ótimo! Burger faz ótimas músicas desde os anos 90, mas é pouco conhecido aqui. O nome Kompakt deve facilitar a veiculação do seu selo lá fora…
Tessuto » Na verdade quem toca o selo é o Michael Mayer, o Jörg faz as másters. Quem mixa as músicas é o L_cio.
Senŏide » Ele é muito bom na mix.
Tessuto » Aprendi com ele. Hoje eu já mixo as minhas próprias músicas. O aprendizado da técnica vai acumulando.
Senŏide » Você testa suas músicas na pista antes de finalizá-las?
Tessuto » Claro! Faço uma demo e toco nas minhas gigs. A melhor coisa é testar a música no clube. Às vezes você ouve em casa e está incrível, daí ouve na pista e percebe que alguns lances precisam ser alterados.
MIXSET ► Tessuto @ Carlos Capslock & O Desfecho Da Operação Leva Jato