Alex Antunes Alex Antunes – foto: Luciana Mancini

Em guerra ao consenso, ícone dos anos 80, Alex Antunes lança álbum recheado de participações

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Alex Antunes abriu seu baú de excentricidades, convidou a nata da vanguarda musical paulistana de outrora e construiu, se que é se pode dizer desta forma, um disco ímpar.

 

“Eu não gosto de poesia, meu lance é spoken word”, me contou Alex Antunes no meio da entrevista que fizemos por telefone (fixo!).  A frase embaralhou a cabeça deste distinto, porem pretenso, escritor que teve a missão de conversar com uma das mais inquietas e produtivas mentes do meio musical (e também jornalístico) brasileiro.

O ex Aquira S. & As Garotas que Erraram, banda pilar do movimento post-punk paulistano dos anos 80,  tem uma mente que viaja contra a corrente, o que por consequência o faz uma peça importante no que se definiu um dia como contracultura. Não tem medo de provocar a discórdia, e tem certa ojeriza pela obrigatoriedade do “consenso”. Falaremos disso mais tarde.

Voltando à poesia. Como alguém “que não gosta” poderia ter lançado um dos discos brasileiros com as letras mais poéticas dos últimos anos? Seria sua colocação uma armadilha? Ou uma tentativa de já destruir qualquer possibilidade de consenso entre nós dois? Ou entre artista e público?

Safado!

Li recentemente nas redes sociais que tratar a pandemia como um momento de aprendizado ou crescimento seria uma espécie de arrogância de classe média privilegiada. Concordo. Para artistas confinados em casa, no entanto, foi um período de larga produção, a ponto dos serviços de streaming registrarem recordes de novos singles, muitos gravados em casa ou à distância.

Durante o confinamento, que nos obrigou a viver uma espécie de reality show solitário onde fomos os espectadores de nós mesmos, a função do artista (a de fazer arte, uai), tornou-se uma espécie de obrigação. Alguns falaram do presente, observando o que sentiam.  Alex Antunes, no álbum Alex Antunes & The Death Disco Machine, falou do passado.  Ou pelo menos falou do presente amparado pela tonelada de experiências acumuladas em décadas e décadas de dixavamento do que é viver na cidade de São Paulo. Tirou cadernos do baú, recuperou velhos rabiscos, criou novos, aprendeu a samplear, e produziu um disco recheado de participações especiais, usando técnicas tão novas quanto um telefone fixo.

Um disco poético.

Desculpa Alex. Sem consenso. Sem ressentimentos.

Alex Antunes e Luciana Mancini

Alex e Luciana Mancini – foto: acervo pessoal

Ela, a primeira faixa do disco, com participação de Luciana Mancini nos vocais e na composição da letra, começa assim:

Então… ela… veio me visitar / Eu já a aguardava / E achava que desta vez estava preparada / Mas ela veio com fúria / Se meteu nos meus sonhos / Quebrou vidros / Bebeu meu vinho (sangue) / Roubou meu homem…

Ora, senhor Antunes!!

Em tempo: a faixa é linda. Uma perfeita intro para um disco, como só os rappers, até então, sabiam fazer. “Ela” já emenda com a segunda música, Unfaithful M.,  esta já com a voz rasgada, judiada de Alex Antunes. Sua voz, para os mais atentos, é sua biografia. Baixão gordo, batida 4 x 4, saxofones esquizofrênicos… entrou na sala a Death Disco Machine.

É que apesar dos pesares / De gostar dos teus não gostares / De lidar-lhe com os azares / E de saber das marés dos mares / Nem queria mudar de ares / Frequentar os mesmos lugares / Fazer parte dos teus quereres / Unfaithful M.

E assim segue. Este papo poesia me transcende. Me vejo abrindo aleatoriamente a página de um livro, encontrando este texto e lendo para a mulher que amo, na madrugada, por telefone (não necessariamente fixo).

Foram as letras do Alex e sua máquina da morte que primeiro me cooptaram, na ocasião do lançamento do primeiro single que antecipou o álbum. Delicadamente chamada “Foder Gente Esquisita & Outros Passatempos Transformadores“. É a quarta música do disco.  “Chame de possibilidades as impossibilidades / comece esse exercício com coisas vãs como foder gente esquisita / e outros passatempos transformadores”.

O texto (poético, foda-se) é recheado de frases sublimes catadas no chão sujo de bebida e cigarro de algum buraco underground. Há sexo. E a insistência da palavra “consenso” me preocupou. Que implicância é esta? Inocente, relacionei ao sexo consensual.

“Há hoje uma obrigatoriedade do consenso” – ensinou-me – “uma necessidade de que todo mundo precisa concordar um com o outro. De que não é possível conviver sem que se pense da mesma forma”.

Se você, leitor, nasceu depois da virada do milênio, faz-se necessário contextualizar. Houve um tempo em que a evolução da sociedade era baseada justamente na contraposição de ideias. Discordar revelava um objeto que estava em nosso ponto cego. Ouvir o argumento nos fazia questionar nossa crença, atualizá-la ou, na maioria dos casos, dar um upgrade no jeito de pensar, admitindo algumas novas opções no modo de ver, entregando um pouco aqui, recolhendo um outro pouco ali.

Houve um tempo em que jornalistas falavam mal de discos. E os músicos falavam mal dos críticos. E ambos amanheciam no mesmo boteco ou casa de show. Tudo isso antes da queda do meteoro. Da abertura da fenda. Antes de o mundo se tornar um grande festival de Parintins.

É como diz, enfim, aquela passagem do livro de Eclesiastes, eternizado muito mais pela canção dos Byrds (Turn, Turn, Turn), do que pela própria Bíblia:  “há o tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora; tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar”.

Há o tempo de discordar e o tempo de concordar – ainda que Alex Antunes não concorde com isso.

Akira S e Arto Lindsay em 1986

Akira S. & Arto Lindsay em 1986 – foto: Mauricio Valladares

Antunes transitou pelo campus da USP quando jovem para estudar jornalismo e cinema, se enfiou na vanguarda musical dos anos 80 e desde então fez um pouco de tudo, desde que este tudo estivesse no mundo da arte. Escritor, jornalista, agitador cultural, produtor. Às vésperas do centenário do modernismo em São Paulo, é justo (e também cool) imbuí-lo de certo comportamento antropofágico, principalmente no que diz respeito a deglutição sonora presente em sua música.

 

 

O álbum é lotado de recortes, colagens, loops, invasões sonoras de gênios como Fabio Golfetti (Violeta de Outono), Kodiak, Fausto Fawcett e o próprio Akira. Tem uma sonoridade lo-fi e um convite à desconstrução. Foi todo produzido durante a pandemia no Audacity, software primitivo que deixaria a molecada da música eletrônica de cabelo em pé.

Alex Antunes, Wendl V e Fe Pinatti

Alex Antunes, Wendl V e Fe Pinatti durante as gravações no estúdio Beatmasters – foto: Penna Prearo

O álbum traz provocação em cada faixa. Há incômodo e uma forte influência, talvez até pelos aspectos semi tecnológicos, do EBM / Industrial, o som de São Paulo. É recheado de participações e tem uma ficha técnica imensa no encarte do CD. Sim, Antunes “prensou” um CD, com encarte bonitinho e tudo o mais.  Confesso que adorei receber novamente a tal da “mídia física” de um álbum, que ficará classificado na prateleira mais carinhosa da estante.

Em relação ao tal spoken word, a técnica é levada ao pé da letra. Não se ouve, do início ao fim do disco, uma só alteração de nota no que compete aos vocais de Antunes.

Eu poderia dizer que é um disco irrepreensível. Mas seria consensual demais com o artista. E eu não quero desapontá-lo.

Ops!

 

 

 

 

 

 

 

 

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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