Ela Minus foto: Divulgação

Ela Minus – Do hardcore à eletrônica, conheça a evolução da Riot Grrrl colombiana em entrevista ao Music Non Stop

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Conversamos com a artista colombiana Ela Minus, que fez de seu álbum de estreia um dos melhores discos de música eletrônica de 2020. Os ingredientes: estudo pesado, foco no hardware, uma reflexão sobre a resistência na cultura club e o código punk impresso no coração.

Muito mais do que a música, a cultura punk / hardcore abriu uma estrada, por vezes sinuosa e cheia de desvios, por vezes desértica e desafiadora, pela qual toda uma geração teve a oportunidade de decidir seguir.  O ponto de partida, uma vila cheia de casas de shows, rodas de pogo, palcos quentes com cerveja barata e chamados quase religiosos à contestação, ao movimento, à evolução, à presença das minas e à tal atitude mental positiva.

Poucos entenderam as mensagens propagadas aos berros na vila. Nunca ninguém disse que a estrada seria ponteada por outras como aquela. A pregação urgente era “movimente-se, tenha atitude, corra, fuja daqui”.

Caminhar dá medo. Por isso tanta gente que recebeu os “mandamentos” deste movimento preferiu ficar ali segura, certa de que no próximo final de semana acontecerá (a mesma) coisa divertida.

Ela Minus

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Ela Minus resolveu pegar a estrada. Artistas com ela lançam grandes discos, que ressoam lá na vila da inanição. E se o exemplo não pode ser seguido por aqueles daquela geração, que seja uma boa história para que então vieram.

Acts Of Rebellion, lançado agora no finalzinho de 2020, é primoroso. Escrito e gravado todo através de hardwares em seu home studio, é recheado de timbres sofisticados, sem as apelações fáceis tão usadas atualmente na música eletrônica, unidos por uma mixagem doce que nos convida a ouvir o dia todo.  A cereja do bolos são os vocais cantados pela artista que abusa do aveludado remetendo aos cantos mais obscuros da década de 80.  Apesar de não ser fácil, nada assusta no disco, o que o torna deliciosamente pop.

Ela conversou com o Music Non Stop de seu estúdio no Brooklin, em Nova Iorque.  Boné e moletom, casca de mina do hardcore, mas com algo diferente, inspirando maturidade para uma garota recém entrada na segunda década de vida.

“Usar somente hardwares torna minha música mais humana. Menos quadrada e regular do que seria se eu estivesse usando computadores” – me conta.  Ela se mudou para os EUA para estudar na Berklee, escola de música por onde já passaram nomes como Quincy Jones, Esperanza Spalding, St. Vincent e mais uma infinidade de notáveis. Estudou percussão de Jazz, o que certamente adicionou a tal “humanidade” a seus beats, e design de sons sintetizados, responsável pelos timbres profundos utilizados em Acts Of Rebellion e que podem ser degustados nas faixas mais ambientes do disco, como o tema de abertura N19 5NF.

Ela Minus

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Quando começou seus estudos, sua ideia era trabalhar como programadora, criadora de códigos para outras pessoas usarem. “Já tinha minha vida com a bateria, achava que minha vida na música seguiria por ali. Laptops nunca me inspiraram. Quando entrei no mundo dos sintetizadores, aí a coisa mudou”.

Quando pergunto o quanto o público está apto a diferenciar timbres tão trabalhados em uma época em que jovens baixam gigabites de material pronto como samples, loops e sons de sintetizadores, Ela prefere voltar ao lugar comum. “Para mim isso não importa.  Não importa qual instrumento eu uso mas sim a música que é feita com ela. A música deve falar por si mesma e todo o resto é secundário”.

Mas os sons que estão dentro de Acts Of Rebellion no entanto, merecem ser degustados. Vêm, afinal, de uma designer de timbres. Há coisas ali que nos remetem muito à aurora do techno em Detroit, com batidas simples e minimalistas de artistas como Frankie Bones. São levemente sujos, levemente tortos, levemente imperfeitos… ora! Humanos!

O não conformismo em ficar no lugar comum do universos sintetizado é uma das dádivas que vem de sua bagagem hardcore. A bagagem de quem compreendeu a mensagem. Com apenas 12 anos se juntou em uma banda, ainda na Colômbia, com quem tocou bateria por 10 anos. “A experiência como baterista de uma banda de hardcore me trouxe a liberdade. Fazia música porque eu gostava. Não esperava nada dali. Mas isso libertou meu espírito.  Acho que a coisa de usar somente hardware também veio do meu hábito de ter de tocar em algo para tirar o som”.

Como um bom punk que pegou a estrada, deixando a vila para trás, o disco não à toa denominado Acts Of Rebellion convida à contestação. Seja na construção dos beats e timbres, seja na conexão das pequenas letras de cada música, um álbum tem de ter sua mensagem.

Ela se aprofunda no questionamento ao valor que damos a pequenas atitudes do dia a dia que mudam vidas e passam geralmente desapercebidas graças à rotina. Acts Of Rebellion! Provoco sobre sua crença em heróis. “Acho que mães são heroínas, por exemplo. São heroínas porque acordam todos os dias e fazem pequenos atos heroicos o tempo todo.  Eu realmente acredito em heróis, mas acho que eles estão escondidos em coisas do dia a dia! – explica – “provavelmente jamais tendo o reconhecimento que deveriam. São os verdadeiros, na minha opinião”.

Suas palavras me fazem pensar em tanta gente que teve de enfrentar nas ruas o inimigo invisível como os trabalhadores da saúde, da limpeza e de supermercados. Salta aqui aquela maturidade descrita acima. Ao contrário do que tantos artistas fizeram, o álbum não é óbvio ao tratar da pandemia. Talvez não há mais tempo para esperarmos por grandes heróis, um conceito de idolatria tão vendido pela indústria musical e nada punk, genuinamente falando. Talvez sequer precisemos. Pequenos atos podem salvar vidas em um momento como este. E cada um está provavelmente sendo o herói (ou o vilão) de alguém próximo.

“Meu álbum acabou tendo um contexto muito forte em 2020 e me sinto uma privilegiada por isso. Me sinto sortuda. Se tivesse feito um disco sobre qualquer outro assunto eu não o lançaria. Ia preferir esperar. Então este disco me deu propósito de vida este ano. Eu tive algo pelo qual correr atrás todos os dias.  Tive conexões com pessoas com quem trabalhei. Algo que eu acreditava que realmente iria ajudar as pessoas a se sentirem melhores”, conta Ela quando finalizamos nossa conversa com o inevitável assunto Covid19. “Eu me vejo como uma musicista de performances, de palco. Todos estão ansiosos para voltar ao trabalho, mas ainda não sabemos como vai ser”

Tal motivação trouxe às plataformas de streaming um baita álbum de música eletrônica.  Ouça com atenção aos timbres. Ouça com hábito de ouvir álbum, de ponta a ponta. E pratique seus pequenos atos de rebelião. Sejamos heróis.

 

 

 

 

 

 

 

 

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.