Edição Stay True do Boiler Room reúne PIB da música eletrônica de Salvador para rebolar com boogie brasileiro, Louie Vega e Seth Troxler

Claudia Assef
Por Claudia Assef

FOTOS VICTOR CARVALHO

TEXTO CLAUDIA ASSEF 

Se, na noite da última quarta-feira (10), um meteoro resolvesse se chocar contra o Terminal Marítimo, em Salvador, a música eletrônica da cidade (quiçá do Estado todo), estaria liquidada. O pensamento um tanto mórbido e besta me veio à cabeça quando notei a quantidade de DJs baianos reunidos na primeira edição do Boiler Room realizada na cidade, com o inglês John Gomez, a dupla brasileira Fatnotronic, os americanos Louie Vega e Seth Troxler e Renato Ratier no line-up.

Tratava-se da segunda empreitada do programa inglês na região Nordeste do Brasil, ambas apoiadas pela marca de whisky Ballantine’s (a primeira foi em Recife, a praça em que mais se consome whisky no Brasil). O local escolhido para este Boiler Room & Ballantine’s True Music Brazil with Seth Troxler é dessas paisagens de tirar o fôlego não só de gringos, mas também de paulistas como esta escriba: um amplo pier com vista para o Elevador Lacerda, com bônus track de uma lua cheia iluminando o céu.

O Terminal Marítimo virou uma enorme pista de dança iluminada em parte pelos copinhos com led do patrocinador

O londrino John Gomez abriu os trabalhos da pista de dança com sua seleção de achados e perdidos do boogie brasileiro, soul music, disco e protohouse music. Fez seu trabalho discretamente, usando vinis garimpados em suas viagens pelo mundo, com pepitas brasileiras em destaque.

Aos poucos, a fila do lado de fora já dava ideias de que o lugar iria lotar. Preparado para receber 1.000 pessoas, o Terminal ficou pequeno para tanta gente. Destaque especial para a quantidade de DJs da velha e da nova guarda que se apresentaram para o baile. Com a ajuda dos mentores locais de toda uma geração de clubbers, Claudio Manoel (aka Angelis Sanctus) e DJ Môpa, fizemos uma lista de DJs que deram check-in no Boiler Room, além deles próprios: Márcio Campos, Oliver Dom Jack, Andre Urso, Adriana Prates, Mauro Telefunksoul, Charles Carvalho, Luis Santoro, Jorge Itaitu, Santz, Nazca, Hércules, Phephz, Lola B., Jerônimo Sodré, Fino, Eddie Valdez, Divinori, Sandro Gomes, Titico, Ubiratan, Luca Buzanelli, Tauã, Leo Ferreira, Jarrão, Suzi 4Tons… pode ser que tenhamos deixado de notar um outro, mas fazia muito tempo que não via tanto DJ junto numa mesma pista!

“Mesmo sendo uma ação com forte presença de marca buscando mais visibilidade, festas como essas alimentam positivamente as cenas musicais locais por criar mais agitos nas cidades, conectando DJs e públicos, trazendo de novo a música para o centro do acontecimento”, contextualiza Claudio Manoel, que além de DJ é produtor cultural, professor da UFRB e fundador do coletivo Pragatecno.

“Assim como para os DJs é sempre gratificante o feedback de novas pistas, igualmente é gratificante para essas pistas esses momentos extraordinários ouvindo boa música e vendo seus ídolos bem de pertinho tocando. O Boiler Room em especial cumpre com força essa função transglobal ao expandir sua ação local e urbana para consumo em redes digitais. Todos ganham com um projeto como esse: marca, DJs, a música e os amantes da música”, conclui.

Gorky e Phillip A, do Fatnotronic: injeção de música brasileira e produções próprias que o povo cantou junto

Baiano tem fama de pensador. De fato, enquanto dançavam e recebiam muito bem os paulistanos Gorky e Phillip A, do Fatnotronic, mais DJs pensavam nos possíveis desdobramentos de um evento tão regado a boa música eletrônica em sua cidade natal – onde atualmente não há sequer um clube ou festa dedicada à música eletrônica underground.

“Esta é uma noite super-importante pra cena de música eletrônica de Salvador”, diz outro DJ que fervia na pista, Emiliano Carvalho. “Nesses 17 anos como frequentador e DJ, costumo dizer que Salvador é bem peculiar, no sentido de atrair raras eventualidades como essa. A edição do Boiler Room em Salvador conseguiu sintetizar com maestria o que há de mais autêntico culturalmente no Brasil somado a esta pujante cultura da música eletrônica que já faz parte do nosso cotidiano”, disse o DJ, conhecido pelo aka Divinori Sun, feliz, enquanto ouvia saindo do sound system do Fatnotronic joias do boogie nacional, como A Gira (Trio Ternura) e Estou Livre (Tony Bizarro), além de hits da dupla, como o edit de Margarida e a bombástica Karma.

Para quem estava exercendo o ofício diante de uma plateia tão interessada, a fome do público por boa música estava explícita também. “Hoje foi demais”, disse logo depois de sair da cabine o DJ Gorky, também conhecido por seu outro projeto, o Bonde do Rolê. “Uma amiga minha daqui de Salvador falou pra mim: ‘Gorky, vocês conseguiram tirar todos os DJs que nunca saem de casa pra ver vocês’. Hoje fiquei arrepiado em alguns momentos”, disse, emocionado.

“É muito legal ver a galera cantando nossas tracks ou edits. Aqui o povo cantou várias. Música brasileira sempre ficou nas entrelinhas, era brega tocar. Agora a gente tá vendo que não é isso”, disse Phillip A, a outra metade do Fatnotronic. “A gente toca música brasileira na Europa já há algum tempo, o povo ama. E aqui no Brasil isso tá acontecendo agora. Ainda é um nicho, mas tá crescendo. É muito gratificante ajudar a levar a música brasileira de volta pra pista de dança”, concluiu.

Gorky nota em suas viagens a Salvador uma abertura total pra música brasileira: “Eu tava no Maniel, que é o dono de uma loja de discos que eu gosto bastante aqui em Salvador. Daí ele colocou um disco do Obina Shock, que é uma banda brasileira meio desconhecida dos anos 80. E tinha uma menina de uns 20 anos na loja que começou a cantar a letra, conhecia a música. Eu pensei ‘como assim’? Aqui em Salvador as pessoas não têm preconceito, o povo gosta de música brasileira e ouve de tudo. Cabeça aberta. Isso faz essa galera ser muito especial”.

A performer Rainha Diaba até deu um toque nas amigas, mas elas não apareceram no Boiler Room

Representante da geração club kid, o performer Léo Costa, conhecido na cidade como Rainha Diaba, passeava pelo Terminal Marítimo que foi convertido em pista de dança de peruca ruiva e meia-calça rasgada no rosto. Uma das pouquíssimas figuras na festa a chamar a atenção pelo look extravagante. “Uma pena as outras não estarem aqui. Falei com algumas amigas, elas disseram que não estavam sabendo do Boiler Room, que não tinham se inscrito no Facebook. Eu falei: ‘bicha, se monta e vai pra fila, com certeza vão te deixar entrar’. Mas cadê que elas vieram? Salvador é muito carente desses eventos. Cheguei a fazer uma festa aqui com música underground, que se pagou até. Mas aí veio outra festa com o mesmo conceito que a minha, só que tocando Beyoncé, e lotou, claro. Assim fica difícil”, desabafou a Rainha, que voltou correndo pra a pista pra pegar o comecinho do set do Louie Vega, uma autêntica lenda da house music americana.

A lenda de Nova York Little Louie Vega desceu a houseira no Boiler Room Stay True com seu fone de ouvido Lollipop

O DJ de ascendência porto-riquenha é até hoje um dos nomes mais importantes do levante da house music em Nova York, onde, em meados dos anos 80, ele começou a fazer block parties no Bronx, a exemplo dos DJs pioneiros de hip hop. Vega passou por clubes fundamentais, como o Studio 54 e Sound Factory Bar antes de formar a dupla Masters at Work com Kenny Dope Gonzalez e, bom, o resto é história.

Com este peso todo no CV, não é à toa que todos estivessem de olhos esbugalhados olhando para suas mãos e admirando seu fone de ouvido Lollipop (aquele que parece um telefone). E lá veio o baixinho, com uma house tipo levanta-defunto, de BPM acelerado e divas se debulhando em vocais puxados no molho gospel. Teve até Depeche Mode num andamento hardhouse que não deixou dúvidas de que Vega queria ver aqueles corpinhos soteropolitanos on fire.

Pista lotada e piscando no ritmo dos copos azuis turbinados com luzes de led distribuídos pelo patrocinador. Terreno perfeito para o anfitrião da noite entrar com sua afrohouse retrofuturista pra dançar deitado– não me julgue, foi assim que eu senti.

Troxler, o anfitrião da noite, soube perfeitamente fazer a transposição da houseira para seu som techno afrofuturista

 

Antes de ser DJ, Troxler é um chef de cozinha. Ele tem uma rede de barbecue, a Smokey Tails, já bem estabelecida e venceu três vezes seguidas o concurso DJ Cook Off, que todo ano elege um mixmaster da culinária durante o ADE (Amsterdam Dance Event). Cozinheiro experiente, ele sabe servir muito bem uma pista de dança em qualquer lugar do mundo. Missão dada, missão cumprida.

Já passava de 1h da manhã quando Troxler entregou a pista, à essa altura já bem calibrada pelas várias horas de bons drinks, para Renato Ratier, encarregado de encerrar a noite. Acompanhei a entrega de bastão e ainda fiquei um tempo vendo como Renato se tornou ao longo dos anos um DJ que sabe totalmente o que fazer e como fazer quando está no comando de uma cabine.

“O Boiler Room nos proporcionou sets incríveis. Com certeza impactou muitos DJs e produtores locais, principalmente da nova geração, abrindo a cabeça de muitos para o repertório e a importância da pesquisa de música brasileira”, disse Fernanda Guaitolini, aka DJ Phephz, que também acompanhava a maratona com um largo sorriso no rosto.

O chiquê da noite foi ainda mais technicolor graças às projeções do VJ Alexis, um dos mais experientes da cena eletrônica, que resolveu voltar a “VJzar” na nite – esses meninos e meninas VJs estão com tudo, fazendo de Olimpíada a instalações de arte. Parabéns, mas, please, não abandonem as pistas, não!

Party people of Salvador se jogando numa noitada de sets incríveis, drinks iluminados e cenário lindo. Pra que mais?

Com line-up que fez todo o sentido (exceto pela ausência de um DJ local na cabine, né?), uma locação de cartão-postal e uma produção impecável, o Boiler Room em Salvador foi um sucesso retumbante. Tomara que seu legado seja potente o bastante para religar na tomada a cena eletrônica desta cidade tão festeira e rebolativa – até hoje não consigo entender como a música eletrônica nunca foi um estardalhaço aqui. Estamos na torcida.

Assim que o vídeo com os sets forem disponibilizados on demand a gente posta. Valeu, Boiler Room 🙂

Claudia Assef

https://www.musicnonstop.com.br

Autora do único livro escrito no Brasil sobre a história do DJ e da cena eletrônica nacional, a jornalista e DJ Claudia Assef tomou contato com a música de pista ainda criança, por influência dos pais, um casal festeiro que não perdia noitadas nas discotecas que fervilhavam na São Paulo dos anos 70.