Duo Fotonovela une música intimista e dançante a imagens da cineteledramaturgia brasileira _ Senŏide Entrevista

Marco AAndreol
Por Marco AAndreol

A música experimental, por definição, não se restringe a nenhuma forma preestabelecida e por isso confere mais liberdade ao produtor; ela não pretende se encaixar em nenhuma cena musical já estruturada ou reproduzida automaticamente mundo afora sem grandes mudanças. É sinal de declínio ou necessidade de profunda transformação quando surgem tutoriais de como produzir determinado gênero musical – qual seria a intensidade exata de graves e subgraves; quantos compassos a música DEVERIA percorrer antes de uma virada; a obrigatoriedade de chimbais no contratempo; etc. – tudo isso perde o sentido original quando deixa de ser processo de descoberta e evolução técnica e se torna um produto enlatado. Resta a memória dos pioneiros, essa sim deve ser perpetuada.

Dito isso ficamos com a impressão de que memória musical e experimentação são opostos; enquanto a primeira procura reviver algo criado em outros tempos, a segunda anseia desvendar o que está por vir ou traduzir sentimentos que ainda não foram claramente expressados.

Desse paradoxo surge o FOTONOVELA [clique]. Nele assistimos a imagens apropriadas de reprises do programa “Vale A Pena Ver De Novo” no YouTube, rostos familiares ao telespectador brasileiro ou sequências clássicas do Cinema Novo, ao mesmo tempo em que ouvimos o estranhamento causado por uma bateria mergulhada em efeitos de reverberação ou melodias doces em contraste à voz grave e sussurrada do cantor. Do distanciamento à aproximação, dessa junção de sentidos, surgem outras interpretações para as imagens e outra atmosfera para a música.

Nivaldo Godoy Jr. e Panais Bouki produzem juntos há muitos anos. É deles a produção musical do álbum mais conhecido (Funky Disco Fashion [clique], de 2004) de Claudia Wonder, diva master do underground paulistano por mais de três décadas (Bouki e Godoy assinavam como The Laptop Boys [clique]). Também foi o casal que produziu Fancy Violence [clique], personagem performer de Rodolpho Parigi que percorreu o circuito de galerias e espaços culturais de São Paulo e Rio de Janeiro entre 2014 e 2015.

Conversei com a dupla sobre o movimento de abertura e veiculação da música que superou os guetos, ignorou o circuito comercial, ultrapassou a internet e encontrou nos festivais de rua paulistanos dos últimos anos um público mais diversificado e aberto ao laboratório cultural que caracteriza esta década. O Fotonovela representa bem o momento em que novos espaços vêm sendo ocupados ou velhos lugares vêm sendo redescobertos e por isso vistos por outros olhos.

REMÉDIO

Senŏide » Vocês dizem que estamos num bom momento para experimentar novas formas de música. Por que?

Nivaldo » Vivemos um período anterior de manifestações espontâneas e festas na rua que tinham propostas diversas. Quando a música saiu dos clubes e voltou para a rua, ela ficou multicultural. Você ouve música de raiz, africana, árabe, misturadas à dance music.

Panais » Até a MPB que estava restrita a um nicho, agora parece renovada e com muitos cantores jovens em evidência.

Senŏide » Eu tenho a impressão de que ainda estamos gestando algo novo. Vocês acham que já está acontecendo?

Nivaldo » Acho que sim. Hoje há um fluxo de informação absurdo, você tem acesso a quase tudo. Agora é o momento de filtrar, de reduzir ao que se gosta de verdade; cada vez mais as pessoas tendem a buscar os artistas que possuem um discurso mais estruturado.

Senŏide » Nós acabamos de nos livrar de uma indústria que, na prática, nos obrigava a consumir determinado produto, agora há um leque aberto de opções, mas, no momento, esse público diverso ainda está procurando o que mais lhe representa. É isso?

Nivaldo » A tendência é que as pessoas queiram se aproximar do que faz parte do universo delas. No contexto de São Paulo, por exemplo, alguém daqui tende a se interessar pelo artista que produz aqui e diz respeito a ele. Esse é o ponto: a gente tá no momento em que você pode vivenciar a música do artista que trata do seu cotidiano, que está mais próximo a você. É uma ligação direta entre o ouvinte e o artista que vive num mundo próximo ao seu, uma forma de se reconectar ao sentido social da música. A música não é só questão de moda ou de estilo, ela é a polaroid sonora de um momento histórico.

Senŏide » O que significa que, a partir dessa aproximação com o público, o artista pode ser mais original e fiel a si mesmo.

Nivaldo » Sim. Até porque competir com o mercado não faz mais sentido.

Senŏide » Ninguém deveria se sentir obrigado a isso…

Nivaldo » Exatamente. Se quem for produzir não for dizer a própria verdade é melhor nem começar. Quem quer fazer algo que tenha alguma importância artística tem que, agora mais do que nunca, fechar os ouvidos à influência externa… Claro, não é deixar de ouvir o que gosta, mas pensar o que realmente a move e a emociona e, a partir daí, escrever uma autobiografia musical. Ela tem que contar a história dela com sua própria música.

Panais » Por exemplo, a Amy Winehouse. Como uma pessoa que fazia aquele tipo de música alcançou tamanho sucesso!? É um jazz que não tinha nada a ver com o bacião da música pop. É original.

TE QUERO ASSIM

Senŏide » A primeira vista me parece que a imagética usada pelo Fotonovela não tem relação direta com a música e por isso causa certo estranhamento. Como vocês associam esses dois universos – música e imagem?

Panais » A desconexão é proposital, mas, ao mesmo tempo, escolhemos timbres mais adocicados – por exemplo, do synth pop dos anos 80 – ou mesmo melodias suaves. Por mais que a música não tenha uma métrica antiga ela remete a certa nostalgia.

Senŏide » E assim vocês acabam afunilando o público de vocês aos que compreendem sutilezas, como a ironia…

Nivaldo » Sim. Como dupla decidimos que falaremos sobre quem, de fato, somos. É uma autobiografia, então é uma música que não vai atingir a todas as pessoas da mesma forma.

Senŏide » Como você disse antes, a intenção não é chegar ao grande público…

Nivaldo » Justamente! Para chegar ao grande público você tem que fazer muitas concessões e nós não estamos, nem no momento, e nem dispostos a fazer isso. A ideia de trazer novamente essa sonoridade mais adocicada não é simplesmente pela busca da nostalgia, é também por uma qualidade musical que não se tem mais.

Panais » Se você tem uma música muito rápida ou muita preenchida, você não tem espaço para discurso, porque ela é muita densa. O discurso precisa de pausa ou de frases inteiras.

Senŏide » O bumbo e o chimbal, por exemplo, podem formar uma grade.

Nivaldo » Exatamente! Por isso resolvemos estender mais o tempo musical – as músicas estão todas num BPM em torno de 105, às vezes 90, 112 no máximo, porque a ideia não é fazer uma música só para dançar, mas que atinja o ouvinte em dois lugares – ela vai acariciar seu rosto e ao mesmo tempo te dar um soco no peito.

Senŏide » Drama! É interessante o fato de ser um produto que funciona na rede social, tanto quanto num show, imagino.

Nivaldo » Fizemos uma apresentação de teste e percebemos que funciona, sim. A ideia é terminar o álbum (previsto para setembro) e já começar a fazer as apresentações. O pocket show foi aqui em casa mesmo, para amigos, o que tem a ver com o universo intimista do Fotonovela.

Senŏide » Como é o setup da apresentação? Vocês mesclam instrumentos acústicos, elétricos e eletrônicos…

Nivaldo » Guitarra, violão, dois laptops (Reason Propellerheads e Ableton Live), teclado, emulador, sintetizador e alguns objetos, como por exemplo, um rádio dos anos 40 e uma máquina de escrever dos anos 60.

TEASER

Senŏide » E uma tela onde passam esses vídeos?

Panais » Provavelmente serão outros vídeos, porque o que funciona na tela do computador pode não funcionar no palco.

Nivaldo » A apresentação para nós é muito importante. Hoje nós vemos o mundo através de uma vitrine. A internet é maravilhosa, mas você não consegue ultrapassar essa tela e acaba vivendo através de uma janela sem ter a experiência real. Acho que chegamos no momento em que devemos retomar os livros, o diálogo, voltar aos encontros e aos jantares.

Panais » Não é que devemos regredir, mas acrescentar.

Nivaldo » A experiência tem que fazer parte do dia, se não ela cai no vazio.

Senŏide » Sei. Tem que haver troca, realização, se não é masturbação solitária.

Nivaldo » Isso. Tem que haver o tête-à-tête, não só o chat ou um messenger, é sentir, ficar junto. A música do Fotonovela é intimidade e, por ser feita por um casal, faz parte do drama da música. Ao vivo é o momento em que você pode realmente tocar as pessoas e, pela sinergia que ocorre, perceber o que elas gostam.

Senŏide » Imagino que, pelo fato de vocês serem um casal, um instiga o outro a produzir mais frequentemente e melhor. Concordam?

Panais » Tem os dois lados, como um conhece bem o outro, o diálogo é mais fácil, às vezes um olhar basta para comunicar, para fazer com que a coisa mude, tome um ou outro sentido. O entrosamento é muito mais fácil, mas, por outro lado, um pode desincentivar o outro mais facilmente. No palco funciona muito bem – se um se mexe, o outro já se liga e fica atento.

Senŏide » As imagens em VHS das telenovelas têm relação com a estética vaporwave, não?

Nivaldo » Totalmente. A gente ouviu muito vaporwave [clique] na primeira metade desta década. Uma das ideias prévias do Fotonovela era não ter estilo definido. Outro fator é que nós não somos exímios instrumentistas, mas isso também faz parte da estética do Fotonovela, pois remete ao punk e ao pós-punk, enfim, ao Do-It-Yourself (DIY) que é determinante no projeto. Não somos reféns da tecnologia.

Senŏide » É interessante como vocês conseguem criar uma estética própria através das limitações, seja como instrumentistas ou pela baixa resolução do VHS.

Nivaldo » Essa limitação tem a ver com a maturidade. Tem um momento que você diz ‘chega, preciso me concentrar no que quero dizer exatamente’. Sem um mote, ou uma ideia prévia, as possibilidades podem fazer você se perder.

Panais » O resultado final você só consegue a partir do momento em que você delimita. Se você está num campo aberto, você não consegue morar, você tem que construir paredes.

CONCRETO

» » » mais no SOUNDCLOUD OFICIAL DO FOTONOVELA » https://soundcloud.com/thearchitectoflove [clique]

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Outros projetos de Panais e Nivaldo »

Como The Laptop Boys junto a Claudia Wonder (2004/2007)

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E abaixo com FANCY VIOLENCE na Galeria Olido, SP (2015)

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CUBO, projeto solo de Nivaldo que, além das faixas autorais, reconstruía hits da dance music e do acid house. Abaixo sua versão para “The Sun Rising” (1989) de The Beloved

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