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Como Don Cornelius e seu “Soul Train” uniram os negros dos EUA
Eterno host do revolucionário programa foi um dos primeiros afrodescendentes a ter um programa de TV no país
Se você tem uma mínima ligação com a black music, conhece o programa de TV estadunidense Soul Train, que foi ao ar entre 1970 e 2006. Ou pelo menos já viu, em centenas de vídeos no YouTube, os cortes do seu famoso corredor, onde casais que estavam na plateia apresentavam passos de danças clássicos do soul e do funk vestidos, claro, na maior beca.
O programa, que ia ao ar no sábado à noite, reuniu a comunidade negra do país. Só se saía para o rolê depois de assisti-lo. Seu famoso corredor passou a ser replicado em todos os bailes black do país, além de ditar moda e até mesmo ser responsável pelo sucesso comercial dos produtos dedicados aos afrodescendentes, como roupas, maquiagens e produtos para cabelo.
O Soul Train foi muito maior do que seu corredor dançante. Recebeu a nata da música do país, revelou um monte de artistas novos, se tornando o Santo Graal para qualquer cantor ou banda. E Don Cornelius, seu criador, foi muito maior do que o programa que criou.
Antes de Oprah, Cornelius foi um dos primeiro negros estadunidenses a apresentarem um show de TV. Mais: foi o mentor, produtor, curador e dono da marca durante toda a sua existência, se tornando um dos mais importantes homens de negócios do entretenimento de sua geração. “Foi um dos homens mais inteligentes que conheci em toda a minha vida”, contou o produtor cultural Bruce Ryan em entrevista ao documentário Don Cornelius: Visionary, Trailblazer & Cultural Icon, lançado em 2012.
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De altura descomunal e voz de trombone, Don Cornelius desconcertava os artistas. Vários choravam antes nos bastidores, emocionados pela honra de estarem prestes a subir ao palco do maior patrimônio da cultura black de seu país. Cornelius tinha consciência de tudo o que representava, e sempre se dirigia a eles de uma forma doce, calma, em velocidade de monge. Quando algum músico confessava estar nervoso antes de entrar no palco, ele respondia: “você não vai ficar nervoso, superstars não tremem”.
Nascido em Chicago (sempre Chicago) em 1936, o cara dedicou toda sua inteligência a um só propósito: combater o racismo nos Estados Unidos enquanto elevava a autoestima de seu povo, fosse do jeito que fosse. Sua primeira incursão na TV foi em um programa da notícias em uma emissora local. O nome do programa? A Black’s View of the News, algo como “as notícias pela visão dos negros”. Havia mais em seus planos, porém. O ex-policial de Chicago e ex-combatente na Guerra da Coreia queria mudar as coisas, e sabia que a música negra, consumida por muita gente branca, seria o caminho.
Soul Train começou a ser transmitido em Chicago em 1970 e foi um sucesso imediato. Com apenas um ano de vida, recebeu uma injeção financeira do dono de uma empresa especializada em produtos para cabelos afro, passando a ser transmitido em mais 18 grandes cidades. Don Cornelius e sua equipe se mudaram, então, para Los Angeles, e logo o programa estaria sendo exibido em lares de todo o país.
Tudo o que o show de TV conquistou e construiu saiu da mente brilhante de seu criador. Soul Train deveria ser matéria obrigatória em faculdades de marketing, administração e até mesmo sociologia. Desde seu primeiro episódio, Cornelius tinha claro seus objetivos, fazendo com que o cara se tornasse um Malcolm X da positividade. Fazia questão de mostrar a plateia porque queria que a sociedade visse os negros bem vestidos, felizes e dançando, e não como eram retratados nos programas de notícias.
O apresentador era venerado, a ponto de ter colocado em seu palco todos os grandes de sua época, como Aretha Franklin, The Jackson 5 (e depois Michael), James Brown, Al Green, Marvin Gaye…
“Parecia que ele era membro família de todos aqueles gênios”, contou Richard Steel, DJ de Chicago. Em um dos momentos mais icônicos do programa, Stevie Wonder, rodeado pela plateia (muito antes do Boiler Room), criou uma música ao vivo, cantando ao piano: “Soul Train, Don Cornelius”, e então pedindo para a plateia cantar junto: “here, brothers and sisters, get together” (“aqui, irmãos e irmãs, unam-se”). De chorar.
Don Cornelius não se prendia somente a grandes nomes. Lançou uma infinidade de artistas até então desconhecidos, como Chaka Khan e o jovem Michael Jackson. E se recusou a parar no tempo. Ajudou a divulgar o rap logo que o gênero começou a chamar atenção, mesmo com sua equipe torcendo o bico.
Fez questão de colocar a música acima de tudo. Quando percebia que o som estava sendo ouvido pelo pessoal black, abria um espaço para quem quer que fosse no Soul Train. Elton John foi um deles. “Eu amava black music e não estava sozinho. Todas as bandas britânicas veneravam o som do programa”, comentou, ao falar do convite. Não foi o único. Beastie Boys, David Bowie e até mesmo Kraftwerk, quando sua música passou a ser influência no rap dos Estados Unidos, chegaram a ser convidados.
Após passar por um aneurisma cerebral, Don decidiu seguir na produção e deixar os holofotes do palco. Entre 1993 e 2006, vários outros apresentadores passaram pelo programa: Mystro Clark, Shemar Moore, Dorian Gregory e Chanty Moore. O último a segurar o mítico microfone foi seu filho, Tony Cornelius.
E falando em paternidade, vamos encerrar com uma bela história de um cara que nos deixou em fevereiro de 2012, contada por seu outro filho, Raymond Cornelius: “Eu estava passeando com meu pai em Los Angeles quando vi uma jaqueta maravilhosa. Meu pai então disse: ‘você não pode usar qualquer coisa só porque achou legal’. Fiquei chateado. Duas semanas depois, já quando estava em Chicago, recebi um pacote. Era a jaqueta e uma cartinha dizendo: ‘é filho, eu também gostei'”.
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