Sesc Jazz 2025 Foto: Mila Maluhy/Divulgação

Dom Salvador no Sesc Jazz 2025: uma liturgia histórica

Adriana Arakake
Por Adriana Arakake

Festival, que acontece entre 14 de outubro e 02 de novembro, celebra a ancestralidade negra e a potência de reinvenção

Esplendoroso é pouco para o que aconteceu no Sesc Jazz 2025. O festival, que começou em 14 de outubro, trouxe logo de início (entre os dias 15, 16 e 17) um encontro que já entra para a memória afetiva do jazz brasileiro: Dom Salvador Samba Jazz Quartet convida Amaro Freitas — um diálogo entre gerações que soou como aprendizado, bênção e passaporte para o futuro.

Sesc Jazz 2025

Dom Salvador. Foto: Mila Maluhy/Divulgação

O palco do Sesc Pompeia virou território sagrado. Dom Salvador, aos 87 anos, parecia reger não apenas uma banda, mas uma ancestralidade inteira. O toque dele é história viva: a mesma mão que, nos anos 1960, ajudou a fundar o samba-jazz, e que formou, no início dos anos 1970, a banda Abolição e abriu caminho para a soul music no Brasil, ainda pulsa com vigor e generosidade.

Capítulo fundamental na história da música negra brasileira, o Abolição unia músicos como Oberdan Magalhães (fundador da Black Rio, sax e flauta), Rubão Sabino (baixo), Luiz Carlos “Batera” (bateria) e Zé Carlos (guitarra). O álbum Som, Sangue e Raça (1971) sintetizou o espírito de uma geração que reivindicava orgulho e visibilidade negra em plena ditadura. Misturava soul, samba, jazz e funk num som de resistência e elegância, e segue sendo um dos discos nacionais mais importantes de todos os tempos — um manifesto musical que ecoa até hoje.

No palco, também estavam nomes que fazem parte da história de Dom Salvador: o já citado Zé Carlos e o grande percussionista Armando Marçal (Marçalzinho), que deu suporte rítmico com elegância e força. Marçalzinho é filho de Mestre Marçal e trabalhou com artistas como Pat Metheny, Paul Simon e grandes nomes nacionais.

Sesc Jazz 2025

Amaro Freitas. Foto: Mila Maluhy/Divulgação

Amaro Freitas, por sua vez, é o herdeiro mais visceral dessa linhagem — um pianista cuja liberdade criativa nasce justamente do reconhecimento de quem veio antes. O encontro entre os dois foi comunhão. A conversa entre os instrumentos soava como algo de outro mundo. Salvador conduzia com a leveza de quem já viu tudo e ainda se espanta com o som; Amaro respondia com coragem, invenção e reverência. O público sentiu: era história acontecendo em tempo real. Havia olhos marejados, aplausos que vinham fora de hora, gente boquiaberta.

Pilar da música preta tupiniquim, Dom Salvador nasceu em Rio Claro/SP, em 1938, e levou seu som ao mundo. Há décadas, vive em Nova Iorque, onde lidera o trio residente do lendário River Café, no Brooklyn. Fundador do Dom Salvador Trio, referência do samba-jazz nos anos 1960, tocou com Elis Regina, Jorge Ben, Sérgio Mendes, Ron Carter e Sonny Rollins. Que ele estivesse de volta ao Brasil, comandando um espetáculo dessa magnitude, era um privilégio raro. Cada show é um documento histórico em movimento.

E é justamente isso que o Sesc Jazz 2025 propõe: celebrar a ancestralidade negra e a potência de reinvenção. A curadoria deste ano é uma travessia de ritmos e diásporas. O festival abriu com a celebração africana de Baaba Maal, do Senegal — um show esplendoroso, que mais pareceu uma oferenda à força do continente-mãe. Seguem nomes que ampliam esse mapa de sons: Alogte Oho and His Sounds of Joy, de Gana; Aguidavi do Jejê, com seus tambores sagrados; Moonlight Benjamin, do Haiti; De Mar y Río, da Colômbia; e o aguardado reencontro de Evinha convidando Marcos Valle, que promete ser outro momento histórico de emoção e pertencimento.

Até o dia 02 de novembro, ainda estão por vir Kahil El’Zabar, mestre do jazz espiritual de Chicago; Fruko & La Bonita, trazendo a pulsação quente da salsa colombiana; Dominique Fils-Aimé; Etran De L’Air; e outras atrações que completam essa celebração global.

Mas foi com Dom Salvador e Amaro Freitas que o Sesc Jazz começou com a intensidade de um rito. Um show que uniu passado e futuro, raiz e invenção, corpo e espírito. Três noites que reafirmaram: o jazz pode até ter nascido nos Estados Unidos — mas o Brasil, definitivamente, é onde ele renasce com alma.

Como disse Amaro Freitas: “Nós só somos, porque Dom Salvador É”. E no Sesc Pompeia, todo mundo entendeu exatamente o que ele quis dizer.

+ Participe do canal de WhatsApp do Music Non Stop para conferir todas as notícias em primeira mão e receber conteúdos exclusivos

+ Siga o Music Non Stop no Instagram para ficar atualizado sobre as novidades do mundo da música e da cultura

Adriana Arakake

Adriana Ararake é DJ e a especialista em jazz, soul e blues do Music Non Stop.