Documentário narra a transição de gênero de um adolescente sob o olhar da mãe.
Importante. Importantíssimo. Este documentário não é sobre ser mãe de uma pessoa trans.
Este documentário é para mães e pais que querem compreender filhos. E para filhos que querem aceitar mães e pais. Ora….
Limiar, documentário dirigido por Coraci Ruiz e participante do 28o. Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, é auto biográfico e narra, através de uma série de entrevistas feita durante anos com seu filho Noah, as dúvidas (não… certezas) do menino em relação a seu corpo, visual, nome e gênero, aliadas à própria experimentação do tão turbulento período da adolescência, sob a ótica da mãe e suas certezas (não… dúvidas) ao apoiar, confortar e ofertar a Noah pedaços de sua própria experiência.
Recém lançado, Limiar vai circular por diversos festivais em 2021. Sobre o objetivo de documentar sua experiência: “queremos que seja assistido por pais de pessoas trans. Um público que nós realmente queremos que vejam o filme e que ele pudesse contribuir com as relações que normalmente nestas famílias são muito difíceis e conflituosas. Pais que tem muita dificuldade de entender e aceitar o processo dos filhos. Entendemos também que ele deve chegar em profissionais da educação (a evasão escolar de pessoas trans é altíssima) e as escolas são ambientes muito hostis para estes jovens” – nos conta Coraci.
Limiar, no entanto, vai além. Fala sobre a liberdade e sobre o tempo necessário para refletir sobre quem nós somos sem a pressão do rótulo e isso transcende a adolescência e nos acompanha até ali, na cama do hospital, antes do último beep do monitor de sinais vitais.
O que você é? De quem você gosta? Porquê? De que jeito?
O documentário, que trata também das questões do tempo (do passar do tempo, do ter tempo), mostra o quanto a pressão pela identidade traz a um adolescente um sentido de urgência que acaba nublando a certeza. Noah, um artista que se expressa pelos desenho muito mais do que pelas palavras, ainda que elas venham com simpática serenidade para um jovem abaixo dos dezoito, se identifica como não binário, classe que propõe um exercício que é muito importante para qualquer ser humano e que deveria ser praticado por todos. O da desidentidade. “Me surpreende, com a possibilidade de ser tantas coisas, serem tantas as pessoas que se identificam como homem ou mulher” diz Noah em uma das entrevistas, em frase que faria David Bowie bater palmas, se mãos ainda tivesse.
Os holofotes sobre a identidade de gênero alheia são potencializadores de uma série de comportamentos sociais negativos, de sites de fofoca a hipocrisias conservadoras. A necessidade tola e nada filosófica de que o adulto deve ser definitivamente definido (foi de propósito) na adolescência, também. Aliadas, eis as cores do inferno adolescente que eu, você e todo mundo passamos por.
Em Limiar vemos um adolescente, sob a ótica da mãe, enfrentar todas estas questões colocadas pela sociedade mas também pelos amigos e família.
Em relação à família Noah deu uma sorte danada. Cresceu em meio a uma que, desde os avós, tem uma visão bem livre da vida. O pouco que ficou do conservardorismo que há vem do choque de realidade ao perceber alguns mandamentos da lousa não foram escritas com giz. “A gente percebe que às vezes o ser humano não é como nós queríamos que fossem” – diz a avó Lena Bartman Marko, ao contar os motivos que a fez desistir do status de “aberto” em seu casamento lá nos anos setenta. Mais uma frase preciosa do filme.
Essa pouca resistência que houve em relação às decisões de Noah se tornaram motivo de reflexão, muito mais do que resistência. No caso de Lena a questão mais latente foi a da contradição da natureza através de tratamentos hormonais e modificações cirúrgicas. Afinal, a pedagoga formada na USP que viveu Kibutz em Israel e em outras comunas na Vila Madalena (onde nasceu Coraci, inclusive) tinha a mãe natureza como sua deusa louvada. Já Coraci viu a mudança do nome de batismo como uma de suas questões mais latentes a lidar. A escolha do nome, fruto de tanto cuidado, carinho e amor, mas que também embute ali uma certa propriedade, bateu forte quando veio o desejo de mudança de Noah, a ponto da mãe ter pensado em alguns rituais para encerrar o “luto” em relação a isso. Considerando que a maioria de nós prefere ser chamado por um mero apelido do que pelo nome de batismo (não é, Jota?), bora deixar de super valorizar os nomes. E Noah, que em todo o documentário foi chamado de Andy e ainda teve alguns outros nomes durante seu processo, talvez concorde. Os nomes que escolheu para si representaram momentos do processo. Personagens de seus cadernos.
Noah descobriu que havia algo desconectado ali dentro por volta dos quinze anos. Amparado por um par de amigos (seus únicos por um tempo, segundo ele), hoje homens trans, conseguiu se aprofundar no tema. Também obteve bastante informação através de canais de Youtube de outros jovens que passavam pela mesma experiência. “A questão da internet, e do Youtube, foi muito importante. Foi de lá que eu tirei meu vocabulário sobre isso. Foi onde eu realmente consegui informação. Através do youtube e também dos amigos”. Conta Noah.
No que diz respeito à questão de gênero, Limiar é mais claro do que água de bica e os louros são para Noah. A cena em que desenha uma pessoa, apontando genitália, coração, cérebro e atribuindo as questões de cada zona do corpo e suas independências substitui horas e horas de blá blá blá. Este momento do documentário deveria ser isolado e virar um gif. Ou um spot transmitido antes de cada novela, vídeo do youtube ou jogo de futebol. Só não entende quem não quer. Pois é: muitos ainda não querem, infelizmente.
Ninguém sofreu mais do que as pessoas trans com o tsunami conservador que assolou o Brasil após a crise econômica do segundo mandato de Dilma Roussef. A atrofia intelectual, cultural e científica ocasionada pela glamourização da ignorância vai nos custar muito caro. Isso foi sentido imediatamente por uma pequena turma mais atenta dos brasileiros, está sendo notada agora parte da população e vai ser sacada por todos logo adiante. Mas no caso de quem lida com a questão de gênero, é a sua própria existência que está sendo invadida. E por gente que você nem conhece.
Limiar educa e emociona. E o mais legal é que ele serve para todos. Ao acompanhar a experiência de Lena, Coraci e Noah, questionamentos sobre como lidamos com o nosso “eu” e sobre como respeitamos o “eu” dos outros vem à tona. Sobre como todos
precisam de espaço, respeito e sala para cuidarem de si sem que alguém fique perguntando “e ai? resolveu?”.
Não. Nós jamais resolveremos a tempo.
Limiar vai participar de diversos festivais e mostras. Para acompanhar as futuras sessões, confira os links da produtora Cisco
Site oficial: www.laboratoriocisco.org