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Do Japão à Jamaica: o preset que revolucionou o reggae

Dancehall

Hiroko Okuda. Foto: Reprodução

Uma japonesa fã de Bob Marley, um produtor inquieto da Jamaica e um preset que atravessou oceanos para fundar o dancehall

Em 1980, a jovem Hiroko Okuda, então com 23 anos, descolava seu primeiro emprego após se formar na faculdade de música Kunitachi College of Music, no Japão. Não como concertista de alguma orquestra, mas como funcionária de uma nova divisão dedicada a instrumentos musicais de uma grande fábrica de calculadoras e relógios, a Casio.

Diferente de seus colegas de curso, aficionados por música clássica, Okuda também curtia música popular. Sua tese foi sobre o reggae, encantada com o show que havia assistido de Bob Marley em 1979, histórico no país. Marley, aliás, é famoso por shows transformadores fora de seu país natal, como já te contamos aqui no seu Music Non Stop.

A 12.917 quilômetros do escritório de Okuda, em Kingston, capital da Jamaica, Lloyd Woodrowe James, dez anos mais velho, já tinha uma carreira estabelecida no reggae jamaicano, assinando como Prince Jammy ou King Jammy em suas produções. O cara era musicalmente inquieto, doido por novas tecnologias e badulaques elétricos, que gostava de enfiar em sua música. Naquele ano, lançava o álbum Fatman vs. Jah Shaka in a Dub Conference, gastando seu talento no dub reggae, cheio de efeitos e delays, procurando uma evolução para o gênero musical que já havia ganhado o mundo através de Marley, e parecia não pertencer mais aos jamaicanos.

Era como se o reggae tivesse pego o avião e deixado todos os seus fãs para trás, em um momento em que o país vivia a turbulência da mudança entre o governo socialista de Michael Mankey e o liberal Edward Seaga, rompendo as relações com Cuba e adotando os Estados Unidos como “melhor amigo”. Dentro do estúdio, um moleque de 14 anos, morador da casa vizinha, ficava circulando o produtor, batendo ponto na sala de gravação e acompanhando, com olhos e ouvidos atentos, tudo o que acontecia por lá. Tratava-se de Wayne Smith. O que ele queria ser quando crescer? Um artista.

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As músicas de Jammy eram tocadas às favas pelos DJs em bailes de quebrada chamados “dance halls”, organizados por dois caras chamados Michael Tomlison e Lois Grant. Virou um dos pontos de encontro da galera que não se identificava mais com os temas paz, amor e rastafari que faziam pirar gringos branquinhos do mundo inteiro. Não era o que eles viviam na desigual periferia de Kingston. Mais: naquele momento, a juventude precisava muito mais de uma válvula de escape do que de consciência política. Um novo som falava sobre dança, festa e putaria. Um som que era tocado nas dance halls. E assim como aconteceria com a house music, o lugar deu nome ao gênero musical.

No escritório da Casio, em Yagamata, a novata Hiroko recebia sua primeira tarefa. A empresa estava devolvendo um tecladinho portátil com 22 timbres diferentes para tocar. Só que a companhia queria embutir no produto alguns ritmos de baixo e bateria prontos, para o usuário tocar por cima. A jovem funcionária teria de criar seis ritmos prontos: rock, samba (isso mesmo, os japoneses já amavam bossa-nova), disco, valsa, swing e pop. Trabalho molezinha? Não mesmo!

A ela, foram dados 8kb de memória para embutir cada preset, envolvendo batida e linha de baixo. Para efeito de comparação, qualquer celular simples hoje em dia tem oito milhões de bytes a mais do que o espaço disponível para a tarefa da garota. Quando Hiroko começou a trabalhar no projeto, pensou: “pelas barbas de Pai Mei… não tem reggae!”, seu gênero musical predileto. Foi então que ela deu seu jeito. O preset “rock” tinha muito pouco daquilo que conhecíamos de Led Zeppelin ou Chuck Berry. Tentando “enreggaezar”, a garota criou, meio sem saber, um gênero que logo mais seria chamado de “ragga”, ou “dancehall”. O teclado Casiotone MT40 foi lançado em em janeiro de 1981.

Na Jamaica, King Jammy procurava formas de renovar suas produções musicais. Enquanto ficava de olho nos temas que andavam encantando a galera que ia aos dance halls mais crus, animados e festeiros, prestava atenção ao que estava acontecendo no mundo. Synth-pop bombando na Inglaterra, Quincy Jones abusando nos sintetizadores nas produções de Michael Jackson e até Stevie Wonder pirando com as novas máquinas eletrônicas que chegavam ao seu estúdio.

“Vou fazer algo mais eletrônico”, pensou, e chamou aquele moleque vizinho que estava a fim de se lançar no mundo da música. Tirou da caixa o Casiotone que havia acabado de comprar, ligou na tomada e apertou o “play” no preset de rock. Assustou-se. A batida e a linha de baixo já estavam prontas! Sem mudar absolutamente nada na invenção de Hiroko Okuda, Jammy deu um microfone a Wayne Smith e gravou a música Under Me Sleng Teng, um tremendo sucesso em seu país, considerada a pedra fundamental do dancehall.

Hiroko Okuda, claro, reconheceu seu beat na música. Ficou feliz. Afinal, havia contribuído para um cenário musical sobre o qual escreveu, enquanto fã, em sua tese na faculdade. Em entrevista à Red Bull Music Academy, declarou: “Eu não fazia ideia de que seria usado assim. Era apenas um ritmo pré-definido para iniciantes. Me sinto honrada. É incrível que algo que ajudei a criar tenha chegado ao outro lado do mundo e se tornado parte da história da música”.

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