Do Hell’s ao Manga Rosa, São Paulo teve época de ouro de clubes. Quem foi sabe o que são verdadeiras #AbsolutNights
Quem pensava em música eletrônica na capital paulista a partir de 1994 já tinha em mente aquele logo colorido de sete patinhas estranhas formando um círculo, algo que parecia uma engrenagem em movimento. Esse logo talvez fosse a representação do motor do techno, som que atraiu hordas de clubbers, diletantes da música e modernosos ao saudoso afterhours do Hell’s Club.
Ao contrário do ecletismo musical que o mundo hiperconectado trouxe para as cenas musicais do século XXI, o mote do som no Hell’s Club era o techno, pura e simplesmente. Esse gênero eletrônico 4×4 era cadenciado, reto, seco, prolongado à exaustão em ritmos cujas sutis variações só eram percebidas dançando horas e horas a fio. O principal maestro das pick-ups do Hell’s era o DJ Mau Mau, que, como você leu em nossa primeira retrospectiva, começara a construir sua reputação no Madame Satã em meados dos anos 80. “O Hell’s foi de fato um ponto de partida da música eletrônica na cidade, a partir do techno. Foi o primeiro a investir nessa ramificação. Isso, aliado ao horário de after e de toda a turma especial que o frequentou foram os ingredientes para o sucesso”, diz o DJ.
O Hell’s criou outros residente famosos, como Renato Lopes, Andrea Gram, Julião e o DJ Alfred, que veio a falecer em 1999. Também apaixonado pelos sons de Detroit como seu amigo Mau Mau, Alfred deixou centenas de discos de seu acervo, que seus amigos distribuíram e venderam, ajudando a formar o case de novos DJs da época, como André Juliani (que em 1999 abriria o saudoso clubinho/bar Pix, em sociedade com Ana Baravelli). Os fundos dessa venda ajudaram a prensar uma edição limitada da faixa São Paulo 15 Graus, que Alfred produziu tirando onda com a Rio 40 Graus, de Fernanda Abreu.
A faixa de Alfred é uma raridade que faz parte do case de poucos DJs, como o de Mau Mau, mas agora você escuta com exclusividade aqui no musicnonstop!
Outro pioneirismo techno que envolve o Hell’s é relacionado aos live PAs: Renato Cohen fez no after um dos primeiros lives da cena paulistana, com um imenso computador de mesa na cabine do DJ. Também passou pelo palquinho do Hell’s o duo Habitants, um dos primeiros live acts de música eletrônica do país, formado por Renato Garga e Renato Malim. A primeira apresentação do Habitants foi no Hell’s, a convite de Renato Lopes, que havia ouvido o som da dupla gravado numa fita, entregue no próprio clube por Garga. Em 95, foi lançado o disco de estreia do Habitants, pelo finado (e incrível) selo nacional Cri du Chat.
Hoje hostess do D-Edge e figura famosa do “clã mineiro” que frequentava o Hell’s, Luma Assis fala das suas memórias afetivas com o Hell’s, algo que inebria a imaginação dos clubbers paulistanos até hoje.
Eu tinha acabado de chegar a SP e achava o Hell’s mooooito moderno. A sensação era de que eu tinha encontrado a minha turma e meu lugar. Eu podia ir vestida do jeito que eu quisesse sem me preocupar com nada nem ninguém, e a música era incrível! Era muito legal, um lugar que você podia soltar toda a criatividade exótica de montação e ser feliz. Não me lembro muito das músicas (nomes ou produtores), mas se tocar agora eu sei que era do Hell’s. Hahaha! Me jogava na lenha seca! E a festa mais memorável do Hell’s não foi bem lá… um domingo eu dormi pra ir mais tarde e acordei com o Hell’s no meu apartamento, porque acabou a luz na buati. Imagina…!”. – LUMA ASSIS
“A mística em torno do Hell’s foi criada por vários fatores: a gente fazia um zine, o Subscience, que numa época sem internet ensinou muita coisa ao pessoal. Tinha ainda as roupas que ajudaram a propagar a marca Hell´s e muita discussão na mídia, como nas controvérsias entre house versus techno que rolaram na época na coluna da Erika Palomino. O pessoal que era do techno e ia ao Hell´s vestiu muito a camisa, vivia aquilo com muita paixão”, lembra Mau Mau.
O rigor do techno de origem militante e futurista de Detroit ornava com a escuridão do porão e com o mix de clubbers “exclusivos”, a patota vip que tinha carteirinha, além de um fluxo de gente alternativa, boêmia, produtores culturais, formadores de opiniões, curiosos e zumbis da noite que sempre aportavam por lá. Era um mix musical e cultural de combustão, que criou um novo nicho musical na cidade, capaz de atrair até músicos de outra seara, como Edgard Scandurra, do Ira!, que fez um techno rock com clipe gravado no after com seu projeto Benzina, que une sua paixão pelos beats com sua persona guitar hero. Assista “Gera”.
De 94 a 1998, o Hell’s, junto dos movimentos clubbers e de cybermanos por festas e casas mais afastadas do Centro (em particular na Zona Leste), além das raves, que assimilavam o techno e traziam também o house progressivo e o trance a eventos ao redor da Grande São Paulo, moldaram a cena de música eletrônica em São Paulo.
Tamanha força de uma festa fez com que as novas casas que viessem a seguir buscassem ser tão icônicas e referenciadas nessa cena quanto o Hell’s (ao contrário do que rola em 2016, quando há muito mais do que clubes: festas, ocupações, pistas ao ar livre… em meados dos anos 90, o contexto ERA o clube, a casa onde se tocava essa música). Antes disso, havia ainda casas contemporâneas ao Hell’s, como A Loca, boatona gay na rua Frei Caneca que existe até hoje, que também desde os anos 90 já tinha lá suas noites de música eletrônica, tanto para o público gay, quanto para os connoisseurs sisudos do techno.
Com decoração sadomasoquista, um afluxo de travestis e gente ainda mais pirada do que havia no Hell’s, a Loca por muitos e muitos anos foi a opção “ainda mais under” pra quem se perdia na night paulistana. A relação da Loca com o techno é memorável em suas sextas techneiras, que marcaram gerações de apaixonados (e obcecados) por essa vertente, tanto na sua versão hard (PET DUO fez nome lá) quanto na deep (as noites do Daniel UM).
Nessa dualidade entre ser “pista eletrônica” e “clube gay”, o B.A.S.E. também foi um nome forte do fim dos anos 90, ocupando o espaço de uma antiga sauna na avenida Brigadeiro Luis Antônio, com foco na house music da época e noites eventuais de outros gêneros (veja aqui lembranças musicais da casa).
Em 1998, o Lov.e abriu na Vila Olímpia com uma nova proposta: um espaço colorido e kitsch, com “lounge”, o espaço de descanso e lugar para ver e ser visto, que era uma moda da época. O Lov.e trazia uma interpretação mais burguesa, refinada, de um rolê de música eletrônica. Com o know-how dos anos Hell’s e com a música eletrônica confirmada como um fenômeno global, o Lov.e cativou e formou um público mais versátil, aberto a um mix de gêneros maior.
Esses novos clubbers absorviam muita música boa em noites de sonoridades mais variada, como drum’n’bass (a famosa quinta-feira Vibe com Marky), house (incontáveis noites e DJs residentes) e um techno que mais pendia ao tech-house. Após alguns anos, tiveram vez até o rock e uma pioneira noite de funk carioca lá por 2003, quando o gênero passou a ser mais consumido pelos clubbers.
No começo do Lov.e havia outra casa similar, a U-Turn, com destaque para seu design elaborado e psicodélico, e noites de deep house (ou “house fino”, como se galanteava na época). Na mesma rua da U-Turn, existiu numa esquina o Botechno, bar com DJs e trilhas eletrônicas, ambiente que era pit stop dessas noitadas clubbers da Vila Olímpia, onde o povo ia beber, encontrar amigos e pegar flyers!
Concomitantemente, e um pouco concorrente ao Lov.e, outro clube fez história na virada do século XXI: o Manga Rosa. Também no roteiro Vila Olímpia, numa esquina da Faria Lima, o Manga fez sucesso com algumas peculiaridades: uma sucesso inicial com sua ênfase no prog e no trance, ao contrário do house e do techno padrões (Roxy e Claudinho I eram os DJs dessa safra). E um after disputado, principalmente pelos festeiros que saíam de raves e ainda queriam curtir um pouco na cidade.
O DJ Santiago hoje não toca mais, só eventualmente, e foi um dos duradouros residentes dos anos áureos do Manga. A casa funcionou de 1999 a 2009, e nesse interim mudou de ponto para a região da Berrini e teve até um retorno em 2012 que ninguém sabe, ninguém viu… Santiago dá seu testemunho dos anos áureos do Manga, principalmente no que tange ao disputado after:
No começo, o Manga não era para ser o clube de música eletrônica que foi. Nos dois primeiros meses você ouvia basicamente house vocal. Eu era residente de todas as noites, de terça a sábado. Passados esses dois meses, teve uma festa em uma sexta, quando teve o primeiro afterhours, e a pessoas ficaram alucinadas com o som, os DJs e o clima de festa. Foi aí que o Manga começou a ser o que foi e a ter DJs convidados, cada um com o seu estilo musical, até para dar uma cara para cada noite. Nesse primeiro ano de clube, eu tinha que tocar house, progressive e techno” – DJ SANTIAGO
O after do Manga tornou-se um fenômeno e quebrou esse código do prog que era tão vinculado ao clube. No vídeo abaixo, que encontramos no YouTube, por exemplo, DJs do techno mais pesado animam uma pista lotadaça em 2006.
Andrea Figueireido foi hostess do Manga em sua segunda fase, e suas memórias evocam o ecletismo que a casa adquiriu. “O público era bem fiel, eu sabia os nomes de todos clientes. Cada dia era uma festa diferente: quinta psy, sexta techno e sábado house. Você sabia de longe quem frequentava qual dia da semana, a cena era muito mais segmentada. No início era mais conceitual e alternativo, depois a cena eletrônica foi crescendo e consequentemente mudando o público, mas o Manga sempre atraiu mais playboys”, relembra Andreia. “A diferença do Manga para os outros clubes era a qualidade do som e as atrações, a casa investia em DJs gringos”.
De um after focado em um só som (o techno), como foi o Hell’s, para o Manga Rosa com seu after eclético (e não menos animado), a cena paulistana cresceu muito de 1994 em diante. São Paulo ainda vivia uma época de aluguéis não tão proibitivos como hoje, e nos primeiros anos da década de 2000 pulularam vários pequenos e duradouros clubes como o já citado Pix, além de Tostex e Torre do Dr. Zero, que faziam afters, noitadas e pistas memoráveis, onde muito DJ top tocava mais descompromissadamente, e até onde muita gente começou a tocar.
Houve ainda o Stereo, uma garagem retangular e escura na Barra Funda, defronte ao Memorial da América Latina, que teve noites “proprietárias” de sucesso a partir de 2000. As festas eram mais famosas que o clube em si, como a quinta acid techno que levava os DJs das raves para os clubes, e a CIO 80s, às quartas, que impulsionou o revival 80s na cidade, e cujo after tinha ainda techno pesado.
Em 2003, o Stereo foi comprado por um DJ e dono de clube do Mato Grosso do Sul até então desconhecido dos paulistanos, Renato Ratier. A casa foi reformada com luzes piscantes e envolventes e tornou-se um icônico clube paulistano que existe até hoje, o D-Edge.
Outro ponto de ferveção renascido na cidade foi a Rua Augusta, com o Vegas Club, que a partir de 2005 encheu seus dois andares de clubbers, gente alternativa da região e, fechando esse ciclo retrospectivo, ressuscitou um afterhours techneiro muito famoso dez anos antes: o Hell’s Club. Agora como uma nova festa, com Mau Mau como residente e o promoter Pil Marques, que virou DJ lá no primeiro after, o “novo” Hell’s do Vegas teve vida por si só em termos de música e ferveção, sem nostalgia dos anos 90, mostrando como São Paulo está sempre disposta a um porão escuro tocando techno até tarde!