
Do canto escuro à Disneylândia eletrônica: como os DJs viraram rockstars
Como a evolução dos festivais e a cultura do smartphone mudaram para sempre a relação entre DJs, público e pista
“Olhem para mim!” Em sua sacadinha, na Praça de São Pedro, os papas católicos dão seus sermões para milhares de pessoas, emocionadas, atentas mais ao fato de estarem “vendo” uma figura mítica do que propriamente ouvindo suas palavras. Celulares em riste. É preciso registrar aquele momento. Magnéticos, líderes religiosos e políticos usaram e abusaram dessa tática. Mahatma Ghandi, Nelson Mandela, Martin Luther King, Jim Jones, Adolf Hitler… Ídolos. Populares.

Tão logo a indústria da música explodiu no planeta, em meados do século passado, os executivos sacaram a tática. A idolatria vende mais do que a música. Era preciso transformar músicos em deuses. Ser “grande”, então, era tocar em palcos cada vez maiores. Estádios, fogos de artifício e outros efeitos especiais. Dançarinos. A estratégia deu certo, e a embalagem da música em um produto redondo que pudesse ser exportado para todo o mundo só fez aumentar a gana, o tesão em ver, ali naquele palco, um artista que você ouviu milhares de vezes sozinho em seu quarto. E se são deuses que desceram ao mundo, por que não fazê-los voar por cima da plateia? Tudo o que a tecnologia tornou possível no campo audiovisual é usado, atualmente, nos grandes shows.
Todo fenômeno comportamental que acaba tomando conta de uma geração, no entanto, gera um movimento contrário, geralmente formado por aqueles que se sentem, digamos, diferentes. E a ascensão dos DJs, a partir da década de 70, está diretamente ligada a isso. Escondidos em cabines escuras dentro das casas noturnas, os tocadores de discos foram se destacando por criarem atmosferas únicas nas pistas de dança em que comandavam, a partir do surgimento da disco music. Atmosferas são invisíveis.
Em uma casa noturna da época, o espaço dedicado aos DJs geralmente ficava em um canto nada especial da pista de dança. Em alguns casos, o artista tinha apenas uma janela (ou buraco) que permitia uma visão bastante tacanha das pessoas que dançavam. E para saber de onde vinha aquele som maravilhoso, era precisa procurar bastante.

Curiosamente, era esse tipo de ambiente que atraía um tipo de público bastante específico: os que estavam de saco cheio das imagens supervalorizadas dos rockstars, tratados como reis intocáveis, inacessíveis, muito distantes de onde viviam as pessoas que consumiam sua música. Tanto nos Estados Unidos, quanto na Inglaterra, ir a uma casa noturna significava uma mudança de paradigma: em vez de ficar parado olhando parando um palco, o lance ali era dançar a noite inteira olhando para o outro, ao seu lado, ou mesmo olhando para si mesmo, gozando a experiência hipnótica que a música repetitiva proporcionava.
A postura “anti-rock” foi ainda mais politizada no inicio do cenário techno europeu, através das festas em raves ilegais e squats parties (ocupações urbanas) no final dos anos 80. Muitos produtores lançavam discos sob um ou vários pseudônimos. Sem foto na capa, sem campanhas promocionais. O lance era ser invisível, mesmo, como uma resposta underground à tendência de estrelazição. A mensagem era: foque na música.
Algumas características humanas, no entanto, são impossíveis de combater. Os DJs que começaram a ganhar seguidores em suas festas precisavam ganhar um dinheirinho a mais para pagar as contas. Um cenário em que as casas tinham seus “DJs residentes” passou a variar a programação trazendo convidados diferentes a cada noite, arrastando consigo o público que já tinham pela cidade. Saber como era a cara do maluco se tornou proveitosa para a bilheteria, e desejada pelo público.

E a gente gosta mesmo de ser fã, não é? De seguir, idolatrar… Os DJs subiram um degrau promocional a partir de então, saindo do canto mais escuro da casa noturna para uma espécie de púlpito iluminado, a “cabine do DJ”, em um lugar mais privilegiado onde pudessem ver o público para quem mixavam e, principalmente, para serem vistos e admirados por eles. Novos clubes gabavam-se de suas cabines, salas de comando que mais pareciam a nave espacial do Xou da Xuxa. Uma embalagem mais adequada para aquele convidado que arrastava consigo uma multidão, a partir da década de 90. Mas não parou por ai.
Conforme o mercado da dance music começou a crescer, veio junto a “profissionalização”: produtoras de eventos, empresários artísticos, agências de bookings, assessores de imprensa e mais um bando de gente trabalhando nos bastidores daquele cenário que começou tão orgânico e mambembe. E o sangue verde, o dinheiro, atraiu os tubarões da indústria musical. Grandes gravadoras começaram a assinar contrato com os primeiros artistas com reconhecimento mundial. Do outro lado, produtoras de grandes festivais voltaram seus olhos para as festas de música eletrônica reunindo cada vez mais gente. Ambas trouxeram para aquele inocente mercado a estratégia da idolatria.
Tanto os eventos quanto as gravadoras ganhariam muito mais dinheiro trazendo consigo seu plano de negócios tradicionais. Para as labels, uma das saídas para colocar o pessoal da música eletrônica no mesmo patamar dos grandes astros pop foram os live acts, como os de Chemical Brothers, The Prodigy, Underworld e, mais tarde, Daft Punk. Os diretores artísticos recuperam a estética futurista de grupos como Kraftwerk e Pink Floyd, acostumados a transformar seus shows em espetáculos audiovisuais e repaginaram o conceito em artistas que levavam toneladas de equipamentos de estúdio para cima do palco, fazendo uma transição entre Larry Levan e Van Halen. Tinha música eletrônica, mas também tinha apelo visual e pirotecnia.

Os festivais de música eletrônica, por sua vez, tratavam de resolver o desafio por outro lado: com cada vez mais gente indo ver um carinha de 1,70m tocar discos atrás de uma mesa de menos de dois metros de largura, a solução foi agigantar o palco com cenografia, como as que vemos hoje em seu exemplo máximo: o Tomorrowland. Centenas de metros quadrados de cenários disneylândicos em volta da figura artística que está se apresentando; megatelões e muita firula audiovisual, atravancando até mesmo a execução musical. Afinal, se eu tocar sempre as mesmas faixas, vai ficar muito mais fácil para o iluminador e o VJ criarem espetáculos sincronizados com o que estou tocando.
A parafernália sensorial sequestrou a atenção do público. A hipnose, agora é visual. Dançar olhando para o palco é um hábito generalizado e, exceto em pequenos clubes, o que se vê é uma multidão de gente voltada para a cenografia, os efeitos visuais e um pontinho preto lá no meio, o DJ, reconhecível somente quando aparece no telão.
Alguns dizem que, após o fim da lua de mel com as drogas sintéticas como o ecstasy e o LSD, o público precisava de algum outro estímulo para se manter dançando por longas horas, além da música. Outros, que o déficit de atenção causado pela era digital é o grande culpado. Certo é que a indústria musical também aprendeu a lidar com outro momento da vida contemporânea: a ascensão dos smartphones e a instagramação da vida. Para ver um artista em um festival de música eletrônica hoje em dia, é preciso dar uma passinho para o lado e sair de trás de um braço levantado com um telefone gravando. Quanto mais belo o palco, mais sedutora é a vontade de registrar, postar, e amplificar a propaganda espontânea do evento. Um movimento que, para muitos, se tornou insuportável.

O pessoal que começou tocando em inferninhos e hoje é estrela mundial da discotecagem, percebe a diferença da conexão de seu público com a música. Carl Cox, Peggy Gou, Blessed Madonna, Richie Hawtin, Solomun, Laurent Garnier, entre centenas de outros, já reclamaram publicamente do excesso de uso de celular pelo público durante seus sets. Esporadicamente, festas e clubes ao redor do mundo estão recomendando, ou até mesmo proibindo, o uso de celular no meio da pista.
O bode com smartphones vai trazer de volta o movimento natural das pistas de dança, concentrados na música? Definitivamente não. É um caminho sem volta e necessário, financeiramente, pela indústria musical. Atingimos o ponto de não retorno quando o assunto é a estética de entretenimento em grandes eventos. No entanto, como falamos acima, toda tendência gera uma resistência.
Pequenos clubes seguem vivos em grandes cidades, proporcionando uma experiência oposta à que se tem em grandes eventos. Na atual ressaca sensorial e química, até mesmo eventos mais radicais ganham corpo em diversos lugares do mundo — são as ecstatic dance parties, festas livres de álcool e drogas, em que se recomenda até mesmo não conversar na pista de dança. A atenção é total na música. Se você anda enjoado de tanto efeito visual, há saídas. Mas você não verá seu DJ internacional superestrela predileto tocar lá.
