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De ‘Morbid Visions’ a ‘Roots’: como o Sepultura colocou o Brasil no mapa do metal

Sepultura

A formação original do Sepultura, em 1989. Foto: Reprodução

Banda brasileira de maior destaque internacional está em sua turnê de despedida e se despede do seu país no Lollapalooza

Na década de 80, o heavy metal era uma febre e uma religião para muitos jovens brasileiros. Cada cidade de médio porte pelo interior do país tinha sua loja de discos de rock. Cabeludos com tênis de cano alto, calças jeans surradas e camisetas de banda se encontravam para ouvir e comprar bolachas. Quando não havia edição nacional, importavam o lançamento, a preços absurdos. Ser “metaleiro”, na época, envolvia um código de conduta. Era preciso saber da música. Conhecer à fundo seus artistas prediletos, as formações e os subgêneros . Longas discussões tomavam horas do bate-papo da turma quando algum grupo decidia trocar um membro da sua formação. A treta Blur versus Oasis era brincadeira de criança perto das rivalidades que existiam entre os fãs daqueles tempos.

O interesse de parte dos jovens da época pela música extrema se refletia também na produção nacional. Gravadoras independentes pipocavam lançando bandas brasileiras, como a Baratos Afins e a Cogumelo (lá de Belo Horizonte). Korzus, Sagrado Inferno e Dorsal Atlântica dividiam as prateleiras da estante da casa da mãe com gringos como Slayer, Sodom e Exodus, entre tantos outros.

A partir de 1985, um novo grupo de Minas Gerais entrou nas rodas de conversa na frente das lojas de disco. Um tal de Sepultura, que havia lançado um “split” pela gravadora Cogumelo. Splits eram discos de vinil compartilhados. Um lado continha músicas de uma banda, e o outro lado, de outra — neste caso, o grupo Overdose, também de Belo Horizonte.

O burburinho que se formou em torno do Sepultura (muito mais do que com seu parceiro de disco) começou a render. Shows fora BH e o reconhecimento do público com a presença de palco do grupo liderado pelos irmãos Igor e Max Cavalera (a formação ainda trazia Jairo Guedes e Paulo Jr.). A Cogumelo sacou que aquela tumba ia render e tratou de lançar logo, em 1986, um álbum em vinil inteirinho do grupo, chamado Morbid Visions. Começava aqui a escalada de um grupo que se tornaria o brasileiro mais respeitado mundo afora, chegando a lugares onde nunca ninguém havia chegado, pelo menos no rock.

Com mais uma boa recepção do público a nível nacional, aquela banda entrou em uma espiral de ascensão. Bons discos, ótimos shows. Vale lembrar que na época o país vivia sob as leis de reserva de mercado, com altos custos de importação de equipamentos. A distância entre a qualidade técnica do som dos grupos europeus e norte-americanos para os brasileiros era gigantesca. Para tentar chegar em uma pressão sonora próxima ao que se fazia lá fora, era preciso muita, mas muita técnica individual. E o grupo mineiro foi um dos primeiros a diminuir essa diferença — um talento que foi reconhecido tanto aqui no país, como lá fora.

O disco Schizophrenia, lançado em 1987 ainda pela Cogumelo, chegou aos ouvidos do primeiro mundo. Boas resenhas foram publicadas em revistas gringas especializadas no gênero. Distribuidoras de lá começaram a procurar a gravadora mineira para tentar levar a música do Sepultura para suas lojas, até que o selo estadunidense New Renaissance relançou oficialmente o álbum em seu país. Estava aberta a porta que levaria o Sepultura para o cenário internacional do metal.

Uma nova boa notícia chegou, então, a Belo Horizonte. A conceituada gravadora Roadrunner Records se interessou pelo grupo e assinou contrato com os Cavalera sem nunca tê-los visto ao vivo ou encontrado seus integrantes pessoalmente. O acordo de sete anos incluiu um relançamento de Schizophrenia, desta vez em nível mundial.

Em 1990, o Sepultura lançou seu primeiro álbum com suporte de uma grande gravadora. Mudou tudo. Som cristalino que valorizava a qualidade técnica dos músicos e, principalmente, da voz gutural de Max. A produção contou com gravações em Phoenix, nos Estados Unidos, sob a batuta do tarimbado produtor Scott Burns. Tecnicamente, nada mais separava o Sepultura de seus colegas gringos. Foi quando o mundo percebeu o potencial dos brazucas. Beneath The Remains foi classificado pela revista Terrorizer como um dos 20 melhores álbuns de thrash metal de todos os tempos. A All Music o rotulou como “essencial”.

Um dos grandes diferenciais de uma banda independente é a coragem. Acreditar no sonho e no próprio som. E nesse quesito, o Sepultura tirou de letra. Quando sacaram as primeiras boas recepções mundial em relação à sua música, não pensaram duas vezes. Mudaram-se para os Estados Unidos, descolaram uma empresária experiente no mundo do metal e meteram as caras em longas turnês viajando de ônibus. O primeiro grande rolê, abrindo para os alemães do Sodom em cidades da Áustria, Estados Unidos e Canadá, foi infernal. As duas bandas se desentenderam já no começo da tour, e o clima no ônibus ficou insustentável. O profissionalismo falou mais alto e eles concluíram os compromissos em todas as cidades, mesmo dividindo o espaço na condição de inimigos mortais. O grande motivo da treta é que, na real, os brasileiros colocaram o Sodom no chinelo durante os shows. Não se tratava só de bons discos. Eles estavam voando no palco.

Conforme ia consolidando sua discografia, os mineiros conquistavam seu lugar no primeiro escalão do heavy metal mundial. Após o lançamento de Arise (1992) e Chaos A.D. (1993), o grupo já fazia parte dos maiores festivais do planeta dedicados a esse público e, em muitos casos, megaeventos com público variado, como o conterrâneo Rock in Rio, onde se apresentaram para mais de cem mil pessoas.

Era hora de instalar o para-raio no topo do enorme arranha-céu construído pelo Sepultura. O grupo sabia da pressão em relação ao próximo álbum, o primeiro na condição de um dos maiores do planeta. Lidaram bem com isso. Sabiam que já haviam conquistado o mundo. Agora era hora de mostrar, para aquela gigantesca massa de fãs, suas raízes brasileiras.

Max, Igor, Andreas e Paulo apresentaram ao público um álbum que foi visto por muitos como uma evolução do metal, trazendo ao gênero percussões tribais. Convidados da tribo Xavante e o percussionista Carlinhos Brown entraram no projeto de Roots, lançado em 1996. O trabalho ajudou a galgar mais um degrau. Agora, eles não só eram uma das maiores do planeta, mas também faziam uma música diferente, propositiva, única no metal.

O gigantesco castelo gótico do Sepultura estava finalmente terminado. Era o momento, então, de viver dentro de sua fortaleza, devidamente seguro, protegido por tudo o que havia construído e conquistado graças ao talento e coragem daqueles quatro cavaleiros de Belo Horizonte. Mas a vida prega peças. Um terremoto tomou conta da banda, fazendo tudo ruir. De dentro para fora.

Em 1993, Max Cavalera havia se casado com a empresária do quarteto desde que se mudaram para os Estados Unidos, Gloria Bujnowski. Tudo andava bem, em família, até que tragédias pessoais inesperadas começaram a minar a estrutura estabelecida. Em 1996, durante os shows de divulgação de Roots, Gloria recebe a notícia de que seu filho foi assassinado nos Estados Unidos. Partiu às pressas, acompanhada do marido, para o funeral. O Sepultura chegou a cumprir um show como trio, em Donnington, com Andreas nos vocais. Seis meses depois, em dezembro, Max deixaria a banda, tomada por uma treta monstruosa.

Igor, Paulo e Andreas demitiram Gloria, acusando-a de dar muito mais atenção à imagem do marido do que a da banda em que trabalhava. Ao saber do conluio, Max se sentiu traído e deixou o Sepultura, no auge do gigantesco sucesso que faziam com Roots. Uma destruição repentina e poderosa, poucas vezes vista no mundo do rock.

Enquanto o mundo do metal clamava pelo Sepultura, o trio remanescente navegou à deriva, perdido no próprio oceano de problemas e incertezas. A neblina só se dissipou com a chegada do novo vocalista, Derrick Green, um artista que tinha pouco a ver com Max, eliminando assim as comparações. Tinha o estilão e a vibe do crossover (a mistura entre metal e punk) que a banda tanto amava e, como uma cereja no bolo, se integrou ao Brasil imediatamente, a ponto de virar palmeirense.

A partir da saída de Max, a biografia do Sepultura foi tragada por desmontes e remontes incríveis causados pela paixão dos quatro artistas pela música, lutando contra o amor ao legado de um projeto que, até meses atrás, estava no topo do mundo. O ex-vocalista montou a Soulfly. Quando os remanescentes lançaram seu próximo álbum, Against (1998), estavam em dúvida até mesmo sobre seguir usando o mesmo nome. Em 2006, o outro Cavalera, Igor, deixa a bateira da banda. Achou confuso? Tem mais: Igor procurou o irmão e montaram juntos um novo grupo, provocativamente batizado de Cavalera Conspiracy. Em seus shows, tocam vários hinos do Sepultura.

Andreas Kisser, ao lado de Paulo e Derrick, recolheram os cacos e seguiram. Com Jean Dolabella na batera — depois, Eloy Casagrande (que foi para o Slipknot no ano passado) e, por fim, Greyson Nekrutman —, lançaram Dante XXI (2006, ainda com créditos a Igor Cavalera), A-Lex (2009), Kairos (2011), The Mediator Between Head and Hands Must Be the Heart (2013), Machine Messiah (2017) e Quadra (2020), longe da grandeza atingida na era Roots, mas sempre apoiados por uma multidão de fãs, aqui no Brasil e em terras estrangeiras.

Mais um triste capítulo seria escrito nessa história. Em 2022, Andreas perde sua esposa, Patrícia Perissinotto Kisser, para o câncer. Embora jamais tenha relacionado o fato à decisão de encerrar a jornada do Sepultura, é óbvio que essas porradas que a vida dá nos cansam. Nos fazem pensar no futuro. E a conclusão de Andreas é que havia mais futuro sem a banda que o tornou célebre no mundo da música, do que seguindo com ela.

O último show em terras brasileiras seria dia 08 de setembro, em São Paulo, momento em que o quarteto finalizaria sua turnê nacional e partiria para algumas datas de despedida nos Estados Unidos, que tão bem os recebeu desde o início de carreira. Mas um sedutor convite do festival Lollapalooza Brasil, que começa daqui a exato um mês, os convenceu a retornar ao país para fechar, com chave de ouro, sua carreira de 40 anos.

O show no Lolla promete ser histórico. Mais do que isso, merece ser histórico. Ninguém tira deles tudo o que conquistaram em quatro décadas. E se dona Vânia Cavalera, mãe de Max e Igor, estivesse viva (faleceu aos 80 anos, em 2023), tenho certeza de que ela, com chinela em mãos, passaria uma bronca nos dois e os obrigaria a colar no festival para o devido fechamento desta incrível jornada.

O Sepultura se apresenta no Lollapalooza no dia 30 de março, domingo, encerrando o Palco Mike’s Ice, das 21h30 às 22h30. Veja o cronograma completo do festival aqui.

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