O Dekmantel daqui é um festival diferente. Diferente, inclusive, do seu supercool papai holandês. Somos habituados a pensar que o “tempero brasileiro” geralmente transformaria um grande e sistemático festival numa suruba desorganizada e feliz. Não foi o caso, provavelmente graças a São Paulo e sua obsessão por autoafirmar-se cosmopolita, integrada, um hub louco e distante, artéria do fluxo de ondas que atravessa crânios e conecta os habitantes da cidade a um seleto clube planetário de dançantes futuristas, descolando a cidade até mesmo de seu país.
A edição brasileira do Dekmantel, que tomou conta do último final de semana (3 e 4/3) em São Paulo, impressionou por diversos motivos. O primeiro, latente, que se apresentava escancarado a quem chegava, foi a organização. Som de qualidade assustadora em todos os palcos, sabiamente distribuídos por espaços arborizados e pátios, cujas calçadas remetiam aos mais velhos aos vários finais de semana que passávamos vagando pelo antigo Playcenter, em busca do brinquedo com menos filas. Bares, banheiros, áreas de descanso funcionavam sem problemas (mas deram sinais de fadiga no final do domingo) em meio a um paisagismo natural formado pela vegetação restante do parque.
O protagonismo das minas e dos brasileiros foi outro ponto que saltou aos olhos e serviu para nos dar um panorama da nova era. No final da tarde de sábado, por exemplo, os maiores públicos foram de Davis e Tessuto. Cashu entrou no horário invasão das mina, tocando no mesmo horário que Peggy Gou (que a-r-r-e-b-e-n-t-o-u), a veterana Maria Rita Stumpf, que fez um show emocionante mostrando que o vozeirão continua intacto, e a dupla Lena Willikens & Vladimir Ivkovic. A brasileira segurou seu público numa tenda enorme, enfumaçada, e fez bonito. A canadense Jayda, que tocou domingo, encantou com sua técnica impecável e muita house. Somando com as porradas sonoras vindas do Main Stage pelas mãos de Nina Kraviz no encerramento do festival, no domingo, certamente coube às mulheres orquestrar alguns dos momentos mais intensos do Dekmantel.
No geral, o techno dominou a programação do Dekmantel, rodado pelas mãos das atrações gringas e nacionais. E ele foi arremessado através do potente sistema com agradáveis texturas que marcou o gênero na década de 90. Muitas vezes rápido, muitas vezes pesado, algumas vezes acid e poucas vezes progressivo. Chegaria a dar até mais nostalgia do que a coisa do Playcenter, não fosse o fato de o gênero musical estar muito vivo, forte como nunca e sendo tratado com o devido respeito. Um figurão de Detroit ali no meio daqueles europeus todos, talvez? Será?
Mas o festival, que teve como um dos pontos mais altos a apresentação apoteótica da dupla alemã Modeselektor, não foi só das batidas de Berlin. Teve DJ Tahira, o grande seletor brasileiro, em horário incompatível com o seu tamanho atualmente. Teve Marcos Valle em show que agradou muito, assim como o do trio Azymuth e DJ Nutz. E teve Mulheres Negras, quem diria. A dupla formada por Maurício Pereira e André Abujamra se juntou para mostrar seu maluquérrimo repertório, que lá atrás achávamos ser “à frente do seu tempo”. E teve todo o line-up do palquinho da rádio Na Manteiga, com sonoridades que surpreendiam quem corria de um palco para o outro.
O Azymuth já está bem acostumado a tocar em festivais de música eletrônica (foto: Gabriel Quintalhão)
No sábado, o rolê no “Playcenter” acabou às 23 horas emendando com o início da “fase noite”, que aconteceu no Sambódromo. A festa dividiu-se em três palcos, ocupando muito bem o espaço. O destaque da noite foi a maravilhosa Lena Willikens, com seu cigarrinho no canto da boca e artilharia carregada no molho do electro, chegando a flertar com trance. A madrugada no palco do samba testemunhou sets bem mais pesados. Teve lives do The Hacker e Teto Preto, DJ Magal e mais muita coisa para quem não estava a fim de dormir!
No domingo Nina Krawitz desceu a mão. Mandou prender e mandou soltar. Tocou depois de Marcel Dettman, que seguiu a linha bate-assopra fazendo um techno elegante e (quase) romântico. E ainda teve o super-aguardado Four Tet que sofreu com uma pane de som que durou cerca de 10 minutos. Ninguém arredou pé do Main Stage e falou a pena aguardar. Kieran Hedben, o cara com jeito de simpaticão por trás do projeto Four Tet, soube contornar o pau no equipamento e fez um set espetacular para quem estava a fim de ouvir algo mais fino, com direito a meter Selena Gomez (e a irresistível faixa Bad Liar) no set sem te dar satisfação nenhuma. Mais protagonismo brasuca neste dia: Marcio Vermelho, Carrot Green, Zopelar e Selvagem em palcos principais e horários de gente grande. E São Paulo viu o domingo acabar debaixo de elegantes e modernos decibéis. Foi um belo dum festival, como diria vovó. Que venha logo o 2019!