A MACUMBA DOS GRINGOS
Com, no máximo, 70 pessoas e comandada pelo DJ italiano Max Lanfranconi, a primeira rave do Brasil aconteceu em Arraial D’Ajuda, no verão de 1991. Depois dessa, uma seqüência de festas aconteceu, quando uma trupe de ingleses invadiu o litoral sul da Bahia com sua música diferente e muita animação. Era o início de uma cena.
Uma sacola de fitas DAT (Digital Audio Tape), um sistema de som alugado, um paraíso tropical como pano de fundo e meia dúzia de gatos pingados determinados a dançar muito. Esses foram os elementos fundamentais para o surgimento da cena de raves no Brasil. Ambições capitalistas não havia. Não se cobrava ingresso e o aluguel do som era rachado entre os organizadores, tamanha a vontade de repetir – no Nordeste brasileiro – o tipo de festa que já vinha acontecendo em locações igualmente paradisíacas, como Bali e Goa.
As primeiras raves do Brasil rolaram em Arraial D’Ajuda, Bahia, no verão de 1991, comandadas pelo DJ italiano Max Lanfranconi. Apaixonado pelo país, o italiano tinha comprado uma casa em Arraial D’Ajuda e feito ali seu QG brazuca. “Tinha viajado para a Índia e frequentado as festas de trance por lá. Quando vim pro Brasil pela primeira vez, em 1989, pensei logo em começar a fazer alguma coisa parecida por aqui. O cenário era lindíssimo e as pessoas superanimadas. Era perfeito”, diz o DJ, que hoje vive em Ibiza.
Com a ajuda de amigos como o inglês Martin Boots, a espanhola Margot, o italiano Michele Petillo e sua mulher, a brasileira Rosa Maria Luporini, Max armou sua primeira festa no terreno da pousada Guaiamum, em Arraial D’Ajuda, no verão de 91 – sem nome nem flyer e com entrada gratuita. “Sempre deixava o bar para algum nativo cuidar, era uma maneira de fazer uma política de boa vizinhança”, lembra Lanfranconi. Nessa primeira festa, havia cerca de 60, talvez 70 pessoas, a maioria amigos ou conhecidos. “Não atraiu muitos brasileiros”, ele diz, talvez porque a música fosse um pouco “dura demais”. No som, que Max comandava usando fitas DAT – como precisava de um equipamento portátil e durável, e ainda não havia CDJ com controle de velocidade (pitch), o jeito era recorrer às tais fitinhas – e falantes mais acostumados a tocar lambada e forró, rolavam faixas de trance como “Goa Way”, do Power Source, “Acid Shell”, do Etnica, e “Electron Bender”, do Technossomy. Ele era o único DJ, não porque fosse fominha, mas por falta de opção. “Chegava a tocar 13 horas seguidas, pois dificilmente aparecia alguém com material para tocar”, conta. Porém, quando algum aventureiro chegava com fitinhas recheadas de música eletrônica, era muito bem recebido na cabine.
A decoração era um fator importantíssimo nas festas de Arraial D’Ajuda. “Gastávamos um tempão decorando o local. Como não tínhamos muitos recursos, usávamos a imaginação. Os troncos das árvores a gente pintava com tinta fluorescente natural, usávamos muita luz negra e tecidos com motivos psicodélicos”, descreve Lanfranconi, que só no ano 2000 criaria sua primeira festa com fins comerciais, o festival Celebra Brasil, em Barra do Una.
BATIDA DIFERENTE
A empresária Veruska Sguissardi, sócia há 17 anos da Glow, com loja em Trancoso (BA), além do antigo endereço na Galeria Ouro Fino, em São Paulo, frequentou muitas raves de Arraial D’Ajuda. “Eu estava em Bali e chamei vários gringos pra virem pro Brasil. Juntou uma galera lá, formou-se um público pequeno, mas cativo”, conta Veruska, que vive entre Trancoso e São Paulo há nove anos. Ela se lembra das primeiras festas como uma espécie de Woodstock moderno. “Tudo era muito mágico. A idéia de estar em contato com a natureza e ao mesmo tempo celebrar com os amigos tornava a energia muito pura. Era uma festa internacional, com gente vinda de todos os cantos do mundo. Isso num lugar onde só havia forró… Foi realmente muito novo e intenso”.
Muitos nativos não entendiam aquilo muito bem. “Chamavam as nossas festas de macumba dos gringos”, conta Max Lanfranconi, que preferia se guiar pelo calendário da natureza do que por feriados ordinários. As raves aconteciam, normalmente, na chegada da lua cheia.
Depois de alguns verões rolando em Arraial D’Ajuda, foi a vez de Trancoso ter suas primeiras raves. “Houve uma espécie de invasão inglesa no final de 1994 na cidade”, diz Rosa Maria Luporini, que já trabalhara nas raves de Lanfranconi, ajudando o marido, Michele, na decoração. O grupo de ingleses chegou a Arraial D’Ajuda e Trancoso depois do eclipse total do Sol, que todos foram acompanhar no Chile. “Era uma gente linda, todos supercoloridos e sarados, um pessoal muito agradável, simpático. Vieram por causa do eclipse, mas acabaram trazendo uma música diferente. E daí vieram as festas”, lembra Rosa, que ajudava na produção. “Todo mundo contribuía, um trazia um pano, outro comprava luz negra, descolava-se tinta fluorescente. E, pronto, não tinha muita complicação”. Na época, ela fazia parte de um circo em Trancoso e era conhecida como palhaça Piririca. Hoje, dois de seus filhos (Hie e Atã) são DJs.
Os tais gringos logo viraram sensação no Sul da Bahia. “Eles vinham de uma cultura muito mais liberal que a nossa, alguns até ficavam pelados nas festas. Teve muito nativo que não entendeu nada e até pegou mal com isso, né?”, diverte-se Veruska. “Mas o que eles proporcionaram foi uma energia muito do bem. Hoje você pensa em rave e já vêm à sua cabeça duas palavras: business e drogas. No começo, lá na Bahia, não rolava nada disso”. Vai dizer então que não rolavam drogas? “Quer saber? Fumavam-se baseados, sim. Mas, ecstasy e ácido tinha muito pouco. E quando tinha, ninguém passava mal, não tinha overdose nem gente retorcendo a boca ou batendo queixo. As pessoas estavam ali pra curtir aquela batida diferente que a gente nunca tinha ouvido. Imagina, na Bahia o som que fazia sucesso naquela época era a lambada”, descreve Rosa.
A promoter Vivi Flaksbaum esteve numa das raves do sul da Bahia. “Frequentei muitas raves bem no comecinho, mas não vou lembrar de detalhes pra te dar”, diz, rindo. Numa delas, Vivi ficou horas a fio em cima de uma árvore e não queria sair de lá de jeito nenhum. “Era um visual muito incrível, o cenário ajudava muito a dar o clima perfeito para essas festas”, diz.
Max Lanfranconi acredita que tenha, sim, criado o embrião das raves no Brasil. “Com certeza, fui o primeiro a fazer essas festas. Apesar de achar que o termo rave não tenha sido muito bem aplicado no país”, diz. É que em várias partes da Europa, a cena de raves não tem muito a ver com festas ao ar livre, em comunhão com a natureza. Referem-se a uma cena musical de BPMs mais acelerados (principalmente o hardcore), tocados em festas ilegais (até as “squat parties”, baladas em prédios invadidos, são consideradas raves). “No Brasil, rave tem esse conceito de você sair da cidade, se desligar da coisa urbana, ir para um lugar legal, em contato com a natureza, e dançar intensamente até o dia clarear”, diz André Meyer. Ele entrou de cabeça no universo das raves quando foi morar na Inglaterra, no começo dos anos 90. Depois, conheceu o lado mais psicodélico numa viagem à Índia. Em 97, Meyer começou a fazer a sua própria rave, a Daime Tribe, com o sócio “Mil”.
… continua depois desta galeria de fotos mara de Veruska Sguissardi e Estrela Tavares
NAGA NAJA
Com a chegada maciça dos ingleses após o eclipse solar, Max Lanfranconi não reinava mais sozinho no comando do som das raves na Bahia. O DJ inglês Simon Macara lembra que na noite de 3 de novembro de 1994, enquanto assistia, no Chile, ao eclipse, chamou vários doidões para ir a Trancoso participar da “Festa do Fim do Mundo”. “Eu já conhecia o Max e sabia das festas que ele fazia. Lá no Chile, falei delas pra um monte de gente. Muitos apareceram em Trancoso no mês seguinte, para a rave de Natal. Estava lotado de malucos de várias partes do mundo, foi muito legal”, conta. “Eu sabia que Trancoso era o lugar ideal para começar uma cena no Brasil. Chegamos lá, nos juntamos ao Max, e a coisa toda começou a rolar forte”, diz o inglês, que agora vive na Costa Rica, no meio da selva, sem telefone, TV ou internet, mas se mantém conectado com o calendário das festas de eclipse. “Vai ter uma na Sibéria, no final deste ano. Eu vou tocar. Avisa as pessoas legais do Brasil”, pede o DJ.
De Arraial D’Ajuda para as festas em Trancoso, a dinâmica não mudou muito. Só havia cada vez mais gente, como lembra Lanfranconi. “Era um clima muito legal, não havia competição nem política como tem agora nas raves. Todo mundo era bem-vindo, vinha desde filhos de amigos, de 15 anos, até gente mais velha. A festa começava às seis da tarde e ia até o dia seguinte. Hoje rave virou um negócio e perdeu muito de sua essência. O máximo que chegamos a fazer como expansão de estrutura foi contratar dois policiais federais para vigiar, caso alguém tomasse muitos ácidos e ficasse inconveniente. Mas isso quando a festa já estava bem grande, com 900, 1000 pessoas”, lembra o italiano, que arranha muito bem o português.
Flyers não eram muito comuns e quando havia eram desenhados à mão e depois xerocados. “Era tudo bem roots mesmo”, diz Lanfranconi. Em Trancoso, no verão de 95, as festas já estavam mais profissionais. “Já tinha uma pequena equipe fazendo a coisa girar. Era o Max (Lanfranconi), o Simon (Macara), Michele (Petillo), Rosinha, o Steve Beach, que era DJ, e o Sky, um canadense que eu conheci em Londres, em 1987”, diz Claudinha Pizzimenti, DJ e dona de um dos lugares mais legais de Trancoso, o bar/clube Para-Raio. “Chegou a rolar uma festa no Para-raio, que foi bem legal. Mas eu acho que rave mesmo, mais profissa e com muito mais gente, foi uma que aconteceu no Vegetal, que é uma espécie de barraca em Trancoso, no reveillon de 98 pra 99”, conta a DJ.
A estética do que viríamos a reconhecer como rave de trance nascia desse embrião de festas à beira-mar. “Já rolava um pouco de tudo o que se vê nas raves de hoje, decoração flúor, panos coloridos, umas teias de aranha enormes, malabares e até um cara tocando didjeridoo”, diz Claudinha. Entre os DJs, ainda havia uma soberania dos gringos: Steve Beach, Simon Macara e Max Lanfranconi.
O treino intensivo na produção de raves no verão baiano foi valioso para o próximo passo dessa turma cheia de dreads e roupas flúor: a realização de uma série de festas em cidades próximas a São Paulo. A rave ganhou o nome Naga Naja e era organizada pelo inglês Steve Beach e seu clã. “Acho que rolaram entre três e cinco Naga Najas, a maior parte em sítios na região de Atibaia. Se me lembro bem, teve uma urbana que não deu muito certo”, diz Camilo Rocha, que não tardaria a fazer a sua própria rave com amigos.
Camilo leu sobre raves pela primeira vez em publicações inglesas como The Face e I-D. “Na revista Bizz, em 90/91, eu já falava disso na minha coluna Dance Music. Acho que o termo circulou razoavelmente na mídia especializada daqui no começo dos anos 90”, conta. Nesse contexto midiático, duas festas institucionais se apropriaram do nome rave, no começo dos anos 90, para vender seus produtos. A primeira foi a Jeaneration Rave, com Mau Mau, Renato Lopes e Marquinhos MS, no estádio do Pacaembu, em 1992. A L&M Music aconteceu no ano seguinte e levou a um galpão da Barra Funda nomes como Moby – ainda na fase hardcore – Altern 8 e Mike Kamins. Tinha lá seus elementos de rave, mas o que ficou mesmo na lembrança foi o gorro de lã pontudão, distribuído como suvenir.
Na Copa de 94, sem patrocínio algum, o DJ Dmitri, que voltava de uma longa temporada vivendo na Europa, estreou na produção de rave no Brasil. Usando o ateliê do VJ Palumbo como locação, ele produziu a rave indoor “A Tenda o Além”, com um mix de atrações que ia de Mau Mau, Renato Lopes e Zé Gonzáles ao baterista Gigante Brasil, dança do ventre, acrobacias etc. “A festa foi um sucesso, tinha umas 200 pessoas. Pena que chegou a polícia e acabou com a nossa alegria”, conta Dmitri, “o” cara quando se fala em rave no Brasil. Nove entre dez entrevistados para esta matéria se esquivaram de contar seus causos de rave usando a desculpa “pergunta pro Dmitri, ele deve lembrar”. Em 96, ele e os amigos John e Ricardo Costa Longa criaram o núcleo Cuckooland, que mais tarde viria a ser transformar na Avonts.
Dmitri fala sobre a formação de quatro núcleos de rave fundamentais para o estouro desse tipo de festa no Sudeste. “Tinha a turma do Matt Cullen e do Shane Hughes, que fazia a Fusion, eu e o Costa Longa, que fazíamos a Avonts, o Rica Amaral e o DJ Feio, que criaram a XXX-Perience, em 97, e o Camilo e o Xuetze, que fizeram a Oribapu”, lista o mestre. “Na verdade, éramos todos de uma turma só. A gente alugava equipamento do mesmo cara, o Nick, que era o mais barateiro do mercado e não se importava em pegar o som só três dias depois”, diz o DJ.
Dmitri conta que entre o final de 95 e o início de 96, várias festas começaram a acontecer ao mesmo tempo. “Foi como se todo mundo se ligasse meio que na mesma hora, foi um estalo coletivo”, resume. E público, tinha? “Tinha, porque 300 pessoas já enchiam uma festa”, recorda. Nada que lembre o cenário atual, em que uma só rave (como a festa de 10 anos da XXX-Perience) é capaz de atrair 25 mil pessoas!
ALUNOS DA PUC E A QUÍMICA DA USP
As Naga Najas em Atibaia ficaram na memória, ainda que em flashes borrados de álcool e outra cositas. “Ninguém sabia muito bem o local da festa, saíram vários ônibus da PUC numa sexta-feira à noite. Estava todo mundo muito ansioso por esta rave, que era a primeira para a maioria das pessoas ali”, conta o inglês Nigel Devine, 50, que vive em São Paulo desde 1990. Camilo também estava lá. “Essa festa foi engraçada, mas a maioria das pessoas nem sabia o que estava fazendo ali ou do que se tratava aquilo. Tinha um cara, meio quarentão, que ficava gritando ‘toca música de verdade, toca um Rolling Stones’”, lembra o DJ/jornalista. Renato Cohen também esteve em uma Naga Naja em Atibaia. “Foi a minha primeira rave. Rolou num sítio e eu só lembro de ter dado muita risada. Um dos caras tinha um saco de ácidos! Não dava pra acreditar”, conta, rindo.
Nigel lembra de ver surpresa nos rostos das pessoas em sua primeira Naga Naja. “O povo nunca tinha visto rave, tinha um monte de ‘e’, estava todo mundo adorando aquilo. Estava tudo superdecorado, tinham umas pinturas flúor e, pra chegar à festa, umas latas com fogo pra indicar o caminho. O som era mais trance. Tinha muita gente e lembro que o dinheiro da festa foi levado pelo cara da segurança. Esses ingleses não estavam muito ligados em dinheiro. Diria que tinham centenas de pessoas lá. Ficamos até domingo sem parar de dançar!”, recorda. André Meyer também esteve numa Naga Naja. “Tinha uma produção bem legal, backdrops fluorescentes, fogo, elementos de circo. Fiquei muito feliz de ver que havia condição de rolar (uma cena de raves) no Brasil”.
Em dezembro de 95, Camilo organizou com alguns amigos a Techno Bells, festa que entrou para a história do underground da cidade. Realizada na faculdade de Química da USP, em parceria com o DJ Xuetze, o francês Ujjain e Guilherme M, então residente do Hell’s Club, a rave na facul reuniu cerca de 100 pessoas. “O lugar era parte do Centro Acadêmico da Química, um salão de concreto com uma varanda de onde se via o skyline da cidade. Tocou goa trance, techno e acid. O que me levou a apostar nisso foram meus três anos de Inglaterra, de muita free party, squat party e alguns festivais no campo. Mas o que eu curtia não tinha nada a ver com o espírito neo-hippie Goa/psy, era mais urbano/punk/techno/house/alternativo. Mas, naquela época, não era o caso de entrar em detalhes, por isso esse início misto de rave, com acid techno e goa trance”, detalha Camilo. A decoração era de panos flúor do Ujjain, vindos diretamente de Goa. “Quem foi adorou e passou a aparecer nas próximas, e a coisa já foi crescendo em progressão geométrica, graças a um bom marketing viral. Havia um clima mais solto, despojado, nada de carão. Música eletrônica fora de uma boate fechada era supernovidade na época, muito inusitado”, diz.
A jornalista Gaía Passarelli, sócia-criadora do extinto website dedicado à cena eletrônica brasileira Rraurl.com, também estreou no mundo das raves na Techno Bells. “Já tinham me chamado para uma Naga Naja, bem no comecinho do Hell’s. Recebi o flyer de algum daqueles DJs ingleses malucões que estavam por aqui na época. Lembro que prestei atenção no flyer por causa de um texto e da ilustração, sem falar que era em Mairiporã [na grande São Paulo]. Não dei bola. Na semana seguinte soube por um amigo que a festa tinha sido incrível, aí me deu vontade de ir”, conta. Gaía também cita outro acontecimento raver que virou um clássico, o Vale do Ponhonnhoin, rave realizada pelo núcleo Oribapu (Camilo e Xuetze) na Serra da Cantareira, em maio de 1996. “Essa foi muito marcante”, resume Gaía. Fundado em 97, ano de efervescência no mundo das raves, o Rraurl surgiu como um “canal para divulgar festas fora do esquemão”. E as raves? Bom, já não é mais preciso achar ter um mapa da mina para saber onde elas estão, não é?
Fotos:
Veruska Sguizardi
Estrela Tavares