Foto: Sam Tsonis [via Unsplash]A invasão das músicas falsas: como o algoritmo abriu as portas para criminosos da IA
Explosão de música artificial ameaça a confiança do público e expõe a fragilidade de um modelo totalmente automatizado
O uso da Inteligência Artificial na criação musical atingiu um novo patamar, capaz de colocar em cheque todo o sistema de streaming mundial. Golpistas e aproveitadores já estão faturando milhões em cima de um sistema de pagamento de direitos autorais criado para remunerar (mal) artistas humanos. Agora, as plataformas de streaming estão rebolando para resolver esse problema, que pode simplesmente acabar com toda a credibilidade dos algoritmos. Antes contada como uma guerra entre artistas “reais” e robôs, a história ganhou outros contornos. O inimigo, na verdade, são estelionatários humanos usando a a IA para faturar dinheiro fácil.

Como funciona a Inteligência Artificial?
Antes de mais nada, vale explicar como se faz uma música utilizando a Inteligência Artificial, uma ferramenta que funciona, na prática, como um time de músicos contratados trabalhando para um produtor de maneira gratuita, e muito, muito rápida. Antes, para criar, um artista se reunia com músicos e um produtor em um estúdio, compunham uma canção, montavam um arranjo, tocavam e gravavam cada instrumento, que depois passava por um processo de pós-produção, as chamadas mixagens e masterizações. Fazendo com o devido capricho que a arte demanda, o processo levava pelo menos algumas semanas.
Agora, uma ferramenta online (que utiliza o processamento gigantesco dos data centers, e não do seu computador pessoal), disponível gratuitamente ou a preços bem baratos, faz tudo isso sozinha, pesquisando a gigantesca base de músicas já lançadas no universo digital e copiando seus estilos, construções e harmonias para entregar um resultado que parece original.
Por exemplo, você abre o site e digita “quero uma canção no estilo sertanejo universitário, usando como referência Dormi na Praça, do Bruno & Marrone. A letra deverá ser sobre uma filha de fazendeiro que chega na balada com uma caminhonete zero quilômetro e um smartfone de última geração”.

Em poucos minutos, a ferramenta vai lhe trazer uma música pronta, com todos os instrumentos recriados digitalmente, um vocal emulando o timbre dos cantores sertanejos, mixada e masterizada, pronta para ser lançada. O resultado, ainda por cima, é editável. “Coloque agora um solo de sanfona no meio e modifique a letra, acrescentando que a filha do fazendeiro encheu a cara de cachaça e arrumou briga, colocando uma voz parecida com a do Renato Russo fazendo backing vocal”. Pronto, em algumas horas de trabalho, você tem o que queria. Não uma obra de arte, mas um produto. Afinal, computador não sonha, não tem traumas, não erra. O resultado será uma mistura gigantesca de tudo o que foi feito, dentro de uma capacidade matemática, computacional, de imitar.
E o algoritmo?
Em plataformas de streaming, desde YouTube e Netflix até Spotify e Deezer, o tal do algoritmo foi o rei da últimas décadas e a base de negócio das grandes empresas de internet. Os servidores das empresas passam o dia lhe oferecendo conteúdo gratuito e, em troca, coletando seus dados e armazenando-os para usá-los oferecendo anúncios direcionados. Se você enviar um e-mail contando a seu chefe que não foi trabalhar por estar com gripe, vai passar o dia vendo anúncios de remédios em seu celular, por exemplo.
Além disso, os sistemas usam os mesmos dados para oferecer a você conteúdos que te interessam mais. Se você gosta de heavy metal, vai ver menos sugestões de forró. No caso do streaming, os algoritmos vão além: comparam você a outras pessoas que têm gosto parecido com o seu e te mostram, aleatoriamente, músicas que os outros estão demonstrando interesse, seja clicando no botão de like ou até mesmo ouvindo a faixa inteira, sem pular. É aqui que os “fazendeiros de conteúdo” estão surfando.

Usando o sistema contra o sistema
Desde que a indústria musical começou a se consolidar, com o advento dos discos de vinil, começamos a criar um monstro. Obras começaram a ser encaradas como um produto, criadas para vender. Produtores e músicos profissionais ficavam atentos ao que o povo gostava. O negócio era “criar hits” e ganhar milhões. Empresas passaram a criar grupos sob demanda, como as girlbands dos anos 60, acabando nos Menudos e Backstreet Boys da vida, explorando artistas de formas inimagináveis.
O que alguns estão fazendo agora, com o advento das ferramentas de Inteligência Artificial, é elevar essa produção à enésima potência. Pesquisas das plataformas Deezer e Spotify identificaram tsunamis de lançamentos musicais feitos com pouquíssima intervenção humana, entre 10 mil e 30 mil canções novas POR DIA. A ideia, agora, é ganhar com os direitos autorais na quantidade de lançamentos, e não na qualidade, se aproveitando justamente dos algoritmos.
Com tanta coisa nova aparecendo, os cálculos matemáticos acabam oferecendo aos usuários comuns (aqueles que apertam play e vão lavar louça, limpar a casa ou sonorizar seu restaurante, sem prestar muita atenção no que está tocando) milhares de canções automatizadas, pagando direitos autorais apenas a quem fez o upload na plataforma.

As pesquisas já identificaram que existem fazendas de conteúdo, em que pessoas são pagas para usar a IA e criar músicas a baciadas. Segundo as próprias plataformas, esses usuários estão sendo identificados e bloqueados. Deezer e Spotify também prometem criar um selo identificando o que foi feito por um ser humano e o que foi “criado” usando totalmente a Inteligência Artificial.
Um problemão, já que o limite é tênue. Um guitarrista e vocalista humano pode, por exemplo, pedir para a IA criar somente a bateria de sua canção, economizando em estúdio. Uma faixa de trance, por exemplo, já é construída totalmente dentro de um computador, dificultando a compreensão do que o que, na sopa musical, é alimento e o que é tempero pronto.
A chegada dos golpistas
A situação vem piorando dia a dia quando organizações criminosas passaram a compreender o rio de dinheiro fácil disponível na algoritmolândia. O Music Non Stop já te contou sobre algumas histórias escabrosas envolvendo a publicação de músicas em nomes de artistas mortos. A cada dia, cresce o número de faixas falsamente creditadas a artistas famosos.

E até mesmo os radicais da extrema direita estão mergulhando seus tentáculos nesse lago, encontrando mais uma forma de amplificar discursos de ódio. Ao divulgar um top 50 de canções que mais viralizaram (graças ao algorítmo, claro), a Deezer se surpreendeu ao encontrar uma música de um grupo fictício chamado JW Broken Veteran, um country cantado em holandês recheado de balelas nacionalistas e anti-imigrantes.
Um sistema cultural facílimo de hackear porque, hoje em dia, tudo é automático. Para economizar com funcionários, as empresas de streaming e as distribuidoras digitais bolaram plataformas nas quais o artista faz tudo. O upload da música, da capa e dos créditos, aperta um simples botãozinho de send e pronto, a faixa já está agendada para lançamento oficial nas plataformas.
Até pouco tempo, era um negócio dos deuses. Com poucos funcionários, os artistas entupiam de conteúdo as plataformas, que ficavam com a maior parte do lucro conseguido com assinantes de seus serviços e publicidade, utilizando o mínimo de mão de obra humana. De certa forma, é como se a criatura se voltasse contra o próprio criador. E a automatização desse mercado poderá ser sua própria ruína.
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É natural e possível que a avalanche provocada pela Inteligência Artificial bagunce o algoritmo de vez, fazendo com que as pessoas, principalmente as que admiram a música não só como trilha sonora secundária das atividades diárias, parem de dar credibilidade às suas escolhas.
As grandes plataformas já estão tentando corrigir a rota, mas logo, logo, aposte nisso, novos serviços dedicados somente a canções “livres de IA” vão aparecer e ganhar usuários. É preciso controle e curadoria humana, já que, na prática, é muito difícil para uma pessoa comum identificar, ouvindo o resultado final, se uma música foi feita usando a IA ou não. A própria Deezer mostrou três músicas diferentes a nove mil pessoas, de oito países diferentes, e pediu que tentassem identificar qual foi feita e tocada por um ser humano. Cerca de 97% das pessoas erraram. Assim como, em 1950, ninguém podia identificar se as músicas das Ronettes foram feita por elas ou por seu “criador”, o produto muito louco Phil Spector.
Enquanto isso, associações de artistas seguem lutando para serem pagos como “professores de IA”. Já que os supercomputadores se utilizam do que já foi lançado para aprender as fórmulas da música que entregam, por que não emitir um relatório com tudo o que usaram de original para montarem suas cópias? É o que o muitos vêm pedindo em declarações públicas e moções de protesto.

A iniciativa mais recente é coordenada pela UBC (União Brasileira de Compositores) e a Pró-Música, com a adesão de grandes artistas da música brasileira como Caetano Veloso, Marina Sena e Marisa Monte, entre centenas de outros. “Toda música tem dono”, proclama o manifesto da campanha.
Acima dessa batalha, no entanto, há uma outra guerra. Uma briga de gigantes, envolvendo a ganância financeira. De um lado, as plataformas de streaming, que automatizaram a distribuição de música ao ouvinte, ganhando rios de dinheiro. De outro, os fazendeiros de conteúdo, estelionatários e milícias digitais, que encontraram no próprio algoritmo uma forma de usar a mesma automatização para sangrar seus cofres.
Os artistas de verdade estão em outro plano, bem abaixo. E seguem apanhando.



