Em entrevista ao Music Non Stop, Craca conta sobre as inspirações de seu novo disco, que o coloca na crista na onda do futurismo latino em uma viagem única
Ouvir Humo Serrapilheira, disco lançado pela gravadora Tropical Twista Records, que sai nesta sexta feira, 29 de abril, em todas as plataformas de música, é se deparar com uma das mais marcantes características do artista Craca. O produtor é capaz de embutir em suas músicas uma marca espacial e temporal que consegue transferir ao ouvinte sensações que vão muito além das harmonias e das batidas.
Escutar sua música, ainda mais no caso do novo disco, é como deitar pelado em uma relva no meio da mata. Você sente a umidade da terra, o cheiro das folhas ao redor, a brisa do vento, a picada das formigas.
Esta habilidade com tons de super poder me intrigam. Conversei com o artista, que estava em seu estúdio, para tentar descobrir de onde veio esta forma de fazer música que soe onírica. Porque o deitar no meio do mato, no caso da música do Craca, tem também uma névoa de sonho. Finalizamos nossa conversa com um questionamento: dá para fazer música de verdade sem ser auto-biográfico?
“Olha, alguns artistas que até conseguem” – nos conta Craca – “eu até tento planejar para que lado vai a música no começo da composição. Mas em meia hora tudo já se perdeu e os sons vão para um outro lugar. Tomam o controle”.
Quem toma o controle, arrisco-me a dizer, é a essência do Craca, na real. Seu inconsciente, carregado de experiências e momentos, encontra no fazer música uma forma de furar o superego e escancarar por quais caminhos o produtor andou passeando durante sua vida.
Craca fugiu no colo dos pais da ditadura argentina quando tinha um ano de idade. “Depois disso, não tive muita contato com o país até momentos mais recentes. A ditadura lá foi barra pesada, e qualquer argentino da minha idade que está no Brasil tem uma história mais ou menos parecida com a minha”.
Já adulto, rodou de carro pela América do Sul, coletando influências e fotografias que serviriam depois de combustível criativo para as quatro músicas de Humo Serrapilheira.
“Me considero uma pessoa que já viajou muito. Viajei bastante pela América Latina, muito pelo Brasil. Viagens de carro. As paisagens que estou falando no disco, eu as conheço”
Tais paisagens, que nós também passamos a conhecer através da música, formam uma pintura codificada da imagem que Craca processou através de seus cérebros, computadores e sintetizadores. Entusiasta da arte visual conectada (sincronizada, melhor dizendo) à música, o que se reflete em suas apresentações ao vivo, o artista lança hoje também um vídeo para promover Humo Serrapilheira: um roteiro que funde passado, futuro, artista e espectador em uma massa amorfa de sensações.
O nascimento do novo disco, como não poderia deixar de ser no trabalho de Craca, teve o sentido de dar as mãos às outras linguagens artistas. As faixas, inéditas até hoje, foram compostas em conjunto com uma obra que serviu de trilha para uma série documental do Sesc TV sobre grupos de teatro independente chamado Cena Inquieta.
O lançamento pode marcar uma curva na carreira de Craca: de mochila nas costas, olhando para o leste e transformando em música a América que conhece tão bem e ajudando a criar uma cena de Futurismo Latino. Uma leitura moderna de um conjunto de civilizações tão que têm tanto em comum e ao mesmo tempo são pouco conectadas, principalmente falando do Brasil, esta grande criança que brinca sozinho no recreio enquanto todo o resto faz algazarra juntos.
“Eu acho que vários fatores são responsáveis por isso.” – falando sobre a desconexão do Brasil em relação ao movimento musical latino-americano como um todo – “Tem o fator geográfico, por exemplo. O Brasil é muito grande o que faz com que você esteja menos em contato com os outros países. Na Argentina, além de ter o Brasil gigante em cima de você, há vizinhos bem próximos, que te dão mais contato. É como se nós tivéssemos mais voltados para o oceano do que para continente, já que muitos de nossos pontos de fronteira são de selva ou montanha. Além disso, de fato á uma questão cultural. Se você pegar a história da indústria fonográfica internacional, eles não estão nem aí para Uruguai, Paraguai e Argentina, por exemplo. Mas no caso do Brasil não, afinal o país é um puta mercado. Eles investem aqui e, ao fazerem isso, promovem artistas gringos e brasileiros, de forma que, o que ouvimos aqui é diferente do que eles ouvem lá.”
Outro fator apontado por Craca é a construção histórica mesmo da música que ouvimos por aqui, mais tropical. Muito do que ouvimos chegava às rádios das casas, principalmente nas regiões norte e nordeste, através de rádios caribenhas. “Além do Brasil, podemos ouvir algo parecido talvez somente na Colômbia”, conta Craca.
A conversa, ao fluir para tais lados, vai apresentando um conhecimento real do artista em relação ao balaio em que resolveu meter a mão. O conhecimento possibilita a interpretação e por isso se ouve tanta verdade em Humo Serrapilheira. O disco tem a brisa quente e salobra de Gabriel Garcia Marques, tem cheiro de fumaça de motocicleta, tem a cúmbia mestiça de periferias ancestrais e também um Lorca sentando à beira do grande rio tentando entender como será que vai estar esta América Latina no futuro.
Musicalmente, já respondo: é em forma de batidas downtempo, em velocidade de trem andino, rodeadas por batucadas com sons indígenas e africanos, atmosfera fresca de selva fechada e a função de olharmos mais para além das montanhas guiados por Craca.
Craca já se apresentou em sua terra natal e no Chile. Se sentiu, como descreve “em casa”. Se considera um artista movido muito mais pela música latina do que pela que vêm dos EUA e Europa. Esta bagagem cultural, aliada ao domínio das novas tecnologias para produção de música, o coloca no cume de uma montanha e o permite avistar este novo continente em 360 graus, como se ouve no disco. “Eu me identifico com uma latino americano mais do que como um brasileiro”, nos conta.
Ao contrário do que se possa supor, os movimentos musicais, ou melhor, geográficos e socioculturais, não são fruto de um planejamento prévio de Craca: “por mais que eu tente, cada trabalho vai sai de um jeito. Vou me deixando levar pelo processo e o processo vai pegando seu jeitão. Este novo disco, é meio que fosse um spin off, na real. No entanto, estou sentindo que talvez este resgate se torne mais importante do que eu vinha fazendo e me faça ficar nele por mais tempo”.
Este é Craca, recebendo o chamado da pachamama para dar a e letra no presente sobre o que nos espera no efuturo. Grandes civilizações culturamente dominantes feitas de madeira, mata e água.