Lurdez da Luz faz parte da história do hip hop nacional. A artista conversou com o Music Non Stop para falar de seu novo lançamento!
Lurdez da Luz está de volta com novidades! Já está disponível em todas as plataformas de streaming o EP “Devastada”. Composto de 4 canções todas escritas pela artista e produzidas ao lado do núcleo de produção Quebrante e do produtor Allan Spirandelli, Lurdez faz uma reflexão sobre o que é ser uma mulher latino-americana na atualidade e traz como tema principal a recuperação pós tempos difíceis. “Esse é EP é sobre o renascimento que estamos tendo neste momento.” explica a artista.
O primeiro single homônimo, lançado em janeiro, traz um beat eletrônico em ritmo de forró em homenagem às raízes nordestinas e aproveita para celebrar a vitória da democracia. Link direto que pode ser feito com “Dólar”, canção feita durante as altas da moeda norte-americana.
“Faço uma analogia entre a estabilidade, a solidez do dólar com um relacionamento amoroso que está se provando ser assim também. Aí vou brincando com referências anti-imperialista, como é o caso do Carybé [artista e jornalista argentino naturalizado baiano, que sem a Bahia nada seria, assim como eu] ao Caribe’, que aqui representa o ‘paraíso americano’ roteiro das luas de mel. Na segunda parte quis passar a ideia de como o dinheiro facilita o romance, inclusive é o mesmo paralelo que podemos fazer com a arte, a minha paixão para vida toda”, comenta Lurdez.
Na linha do relacionamento aparece “Sede de Sertão”, música que fala sobre a vontade de ter alguém e a distância geográfica de um país com dimensões continentais como o Brasil. Já em “Para Célia Sanches”, Lurdez foi inspirada pela biografia da ativista cubana que foi chamada por Fidel Castro de “A flor mais autóctone da revolução”, tudo isso, porque além de uma revolucionária, pois lutou pela liberdade de Cuba contra o regime militar imposto por Fulgêncio Batista, ela tinha um lindo jardim de flores que cultivava em sua casa. A figura de Celia Sanchez traz simbolicamente a grandiosidade da mulher latina. “São músicas com roteiros docu-ficcionais ” diz a artista.
As inspirações para este trabalho transcendem a música. Lurdez cita artistas como a portuguesa Grada Kilomba, que trouxe a instalação “Desobediências Poéticas” na Pinacoteca em 2019 e tendo como base suas raízes em Angola e São Tomé e Príncipe, traz em suas obras a ideia da decolonialidade. De outro lado está a cubana Ana Mendieta, performer, escultora e pintora, refugiada nos Estados Unidos em 1961, após a posse de Fidel. Ela traz essa conexão do feminino com a natureza, na verdade uma reconexão, dentro de um contexto urbano com imagens impactantes sempre focando na luta antipatriarcal. E a HQ “Crônicas de Palomar”, do cartunista Gilbert Hernandez, que apresenta tramas com personagens ficcionais em uma cidade pequena inventada em algum ponto da Latinoamérica, que foi influenciada pelo livro “Cem anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez livro que marcou a adolescência de Lurdez.
Mais sobre Lurdez da Luz
A cantora, compositora e rapper paulistana, referência na cena do rap e da música experimental brasileira, começou sua trajetória no grupo pioneiro de hip hop Mamelô Sound System, uma das revelações mais fantásticas do berço musical de São Paulo, quando resolveu então trilhar sua carreira solo — com três discos impecáveis: “Lurdez da Luz” (2010), “Gana Pelo Bang” (2014), “Acrux — Ao Vivo” (2017).
Entre timbres e rimas sobre a vivência feminina na região da Luz no coração da capital paulista, Lurdez transita com viés social e afetivo entre o rap e a música popular brasileira, carregando influências do samba, do dub jamaicano e do jazz norte-americano. As letras coloridas pela sinergia do criar fértil versam sobre desigualdade social, maternidade, mitologias clássicas & populares, afeto romântico & acolhedor, pela vida, encontros e o poder do corpo em movimento como expressão máxima da cultura.
Conhecida pela agilidade e contundência das rimas e das ideias que atravessam seu flow, a artista já colaborou brilhantemente com nomes como o Coletivo Quebrante, com quem lançou o EP “Hey Man/Pégasus 7”; com participação especial no primeiro álbum de Anelis Assumpção em “O Importante é o que Interessa”, participou do álbum coletivo “Ekundayo”, ao lado do grandioso Naná Vasconcelos, também fez parcerias com o pernambucano Jorge Du Peixe e expoentes como Russo Passapusso e Kiko Dinucci.
Lurdez contou pra gente detalhes sobre o processo de criação do EP, suas influências, parcerias e próximos passos nessa nova fase, confira:³
MNS Você é uma artista bastante versátil, que passeia e flerta com diversos gêneros musicais e universos sonoros, se permite experimentar e não se prender a caixas e padrões de tendências de mercado. Como você percebe as sonoridades presentes nesse trabalho?
Eu acho muito importante a gente estar sintonizado com o mercado, o mercado é um só e a gente faz parte de tudo isso, mas ao mesmo tempo a gente não pode esquecer do principal que é o que a gente tá afim de fazer.
Eu poderia ter desistido desses sons já, sabe? Mas eu sei qual o valor disso, eu sei que é importante porque eu sei como que foi criar, sei qual foi o primeiro sopro ali e eu vou valorizar isso, por mais difícil possa ser levar até o fim.
Sobre os gêneros… eu realmente sou muito da intuição, tudo que me atravessou desde criança está aqui no meu repertório, em algum lugar, que eu vou acessando. E qual gênero é tal som é a única coisa que eu não penso e depois eu acabo tendo que dar um jeito de explicar pro mundo. Mas primeiro vem a letra, nasce algo, eu paro pra escrever, de repente encontro um acorde, uma melodia…
Mas nesse caso, o que eu acho da idéia é que em termos de base, é essencialmente hip hop, entendendo a hip hop music da forma mais abrangente, sabe? Porque, acho que até Devastada, que tem um acento diferente, é um beat eletrônico e também cantada de uma forma mais próxima de uma rima. As outras estão mais num lugar de canção, melodias mais definidas, e tal, mas ainda tá dentro de um universo que é do hip hop, mas com sabores da musicalidade brasileira.
A minha busca continua a mesma, que é a de uma MC do Brasil, influenciada pela música brasileira…sabe? Ás vezes percebo questionamentos sobre o rap nacional ser outra coisa, dentro do hip hop, e sim, concordo, porque é brasileiro, e tem influência desse lugar. Isso tem a ver com o que te forma culturalmente e com a sua verdade.
MNS Tem algum tempo que você vem trabalhando com o coletivo Quebrante, como se deu essa parceria e como isso influencia os trabalhos de vocês?
O Matthieu, que é o baixista, e o DJ Will, são uma dupla. E desde o início desse projeto deles como Quebrante a ideia era convidarem outros artistas (cantores) para participarem das instrumentais que eles estavam produzindo, além de instrumentistas. Participei de um projeto com eles, que me enviaram algumas bases e eu escrevi para elas, numa pegada mais reggae, que teve participação também do Kiko Dinucci (nos synths) e do Samuca (nas guitarras). Isso no comecinho da pandemia, nesse esquema mais caseiro. E eu gostei muito do resultado e então, depois disso, propus o contrário: dessa vez Lurdez convidando o Quebrante.
Então na nossa primeira parceria, foi meio que eu entrando na visão de produção musical deles e agora meio que eles entrando na minha. Eu participei bastante do processo de produção musical desse trabalho, participei da direção e foi muito legal esse parte, pude perceber o quanto eu tô sacando bem o que eu quero, sabe, em vários aspectos, e todo mundo contribuiu também, de várias formas. Inclusive o Allan (Samuca e a Selva), que toca guitarra com a gente foi responsável por várias harmonias e também está na produção musical. É um trabalho feito a várias mãos, que não tem uma figura única de um produtor musical. Foi muito massa, mas lidamos também com questões do distanciamento, que é muito menos divertido.
MNS Pode compartilhar com a gente artistas que inspiraram você no período de criação do EP, ou que tem te inspirado nesse momento?
Tem aquelas pessoas que curto muito, desse movimento das cantautoras: Karina Bur, Letrux, Josyara, Jussara Marçal, Brisa flow, a Marieta, Tulipa Ruiz, Amanda Magalhães, Isis Broken, Alessandra Leão, Stefanie, que tá produzindo agora disco novo… No trap, acho interessante o espaço que ocupam a Tasha e Tracie, o Don L, a Flora Matos, a Ju Costa também…
MNS Como você definiria a experiência de lançar esse novo trabalho num período pós pandemia, num novo contexto político?
As músicas vem dessa época mais apocalíptica mesmo… No momento pré pandemia foi quando comecei a trabalhar nelas, mas já inspirada por uma percepção atenta sobre o que tava acontecendo no Brasil, além das minhas reflexões internas e pessoais. Acho que muitos artistas tem isso né, a gente trabalha nossas emoções profundas, muitas vezes gerando obras autobiográficas.
Mas o cenário sócio-político e econômico dos últimos anos, e esse avanço de uma ideologia de extrema direita (se é que dá pra classificar dessa forma os movimentos que ganharam força de uns tempos pra cá… uma espécie de fascismo, uma salada de chorume… ) fez a gente buscar entender como seria lidar com isso e com a possibilidade de ter aquele cara como presidente (esse dos últimos 4 anos). Então algumas dessas músicas, que são mais antigas, começaram a surgir nesse cenário, e algumas são mais novas, que sugiram mais pro meio/final da pandemia, quando caiu a ficha que aquele caos duraria mais tempo do que muita gente imaginava, somado ao isolamento social, o confinamento em casa e tal.
E houve um atraso mesmo no fazer, por ser um trampo completamente independente e também por esse distanciamento que forçou o processo a se construir através de troca de arquivos, artistas trabalhando cada um em suas casas, testes… dentro do tempo que cada um tem pra se dedicar também, afinal, não estávamos recebendo, totalmente DIY, fazendo porque a gente ama… E foi um trabalho que teve também o lance do meu amadurecimento quanto a minha voz, fazendo coisas que eu não estava tão acostumada a fazer. Foram criadas mais músicas também, então tem mais coisas, que vou soltar aos poucos, de uma nova fase do meu trabalho, que está representada nessas primeiras faixas.
MNS Como você percebe o cenário da música popular brasileira atualmente?
Acho bacana que as mulheres compositoras estão conquistando cada vez mais espaço, isso tem me deixado bastante otimista. E acho também que tá rolando uma abertura maior para o experimento, se você olhar pro cenário da música independente tem uma grande variedade de coisas acontecendo.
No mainstream também, apesar de ter muita coisa superficial, a gente tem visto a acensão da música periférica, vemos muita inovação nas produções, muitos trabalhos interessantes e essa coisa da música como entretenimento também, outras batidas surgindo…
E por mais complexo que seja, a gente vem duma fase onde parecia que os meios de difusão iam se democratizar e as gravadoras deram um jeito de retomar o controle do mercado. Eu não sou contra gravadoras nem nada, mas eles conseguiram virar o jogo de um jeito que continuam com o poder de decidir como e para quem entregam sua música, acho que a história de viral pela internet, como aconteceu com a Liniker por exemplo, já não parece mais uma realidade mesmo com um talento daqueles.
E agora tem também essa discussão sobre Inteligência Artificial, que eu não acho que será capaz de substituir o trabalho de criação de um ser humano. Tentei criar uma composição com inteligência artificial e não me surpreendi e nem encontrei profundidade ou algo que me emocionasse no resultado.
MNS Tem previsão de shows com o repertório do EP para os próximos meses?
O lançamento com o Quebrante estamos prevendo para acontecer em abril ou maio, estamos definindo.
MNS Tem planos para esse ano que pode compartilhar com a gente?
A história com o Quebrante ainda está rolando, tem duas músicas pra sair com Rodrigo Campos e com a Luisa Maita, e também to participando de um projeto de homenagem ao Marku Ribas, vou lançar algumas versões onde o Rap está envolvido também e a ideia é que isso vire um show de homenagem com alguns convidados.
Também estou em processo de criação para o meu próximo disco, que deve sair entre o final desse ano e 2024. Estou produzindo algumas coisas com a Raiany Sinara e prevemos participação de outros artistas convidados. Estamos pensando muito num caminho que flerta com o Rap Old school, e que também flerta com o Funk e as origens desse movimento, com referências de obras do Afrika Bambaataa e coisas desse período.
MNS Uma mensagem para os leitores?
Acho que seria legal que as pessoas ampliassem suas playlists com as sugestões das plataformas digitais mas também dessem uma pesquisada sobre artistas novos, de coração aberto. Apresentem o que vocês gostam pra outras pessoas. Isso também é uma forma de militância artística, propagar o trabalho de artistas independentes, com menos visibilidade.
Ouça o EP “Desvastada” de Lurdez da Luz e Coletivo Quebrante nas plataformas digitais.