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Conheça a história do primeiro disco de música eletrônica nacional contada pelo próprio autor, o maestro Jorge Antunes

Versus, álbum lançado este ano pelo americano Carl Craig com colaboração da Les Siècles Orchestra, registra um experimento musical que começou em 2008 e conta com a presença do pianista clássico Francesco Tristano. Uma década antes, o francês preferido dos brasileiros, Laurent Garnier, já havia juntado techno com música erudita em Paris.

Vale ainda lembrar que instrumentos de cordas estão presentes desde a primeira geração de lançamentos de techno de Detroit e que os alemães do Kraftwerk, pais de tudo o que é relativo a misturas de música eletrônica e acústica no mundo pop, tinham alguma formação musical clássica.

Porém, quando deixamos de olhar para o maravilhoso mundo das baladas, rádios, lojas de discos e quartos de adolescentes apaixonados, quando voltamos nosso olhar para o mundo da música erudita, maestros doidões já experimentaram sons sintetizados há muito mais tempo. Pierre Henry, Pierre Schaeffer, Michael Phillipot, Karlheinz Stockhausen e, tchanãm, o maestro brasileiro Jorge Antunes, autor do seminal disco Música Eletrônica, de 1975, marco zero dos beeps e poins nacionais.

OUÇA MÚSICA ELETRÔNICA, DE JORGE ANTUNES

O inquieto maestro carioca Jorge Antunes pautou a obra de toda uma vida em cima da experimentação vanguardista. Entrou para a Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil (atual UFRJ) e em 1961 já estava debulhando parafernálias eletrônicas em busca de sons. Filho (e aluno) do pintor Carlos Antunes, além de estudante de física em paralelo com a música, Jorge se acostumou a transitar entre diversos campos.

Participou já em 66 do Salão Nacional de Arte Moderna com a instalação Ambiente I. “Na época, eu vivia um momento um tanto quanto místico, acreditando no sexto sentido”, conta o maestro ao Music Non Stop. ¨A obra trazia essa mensagem extramusical. Para obter a ação do sexto sentido do público eu defendi a tese de que este seria despertado se eu fizesse o público usar, ao fruir da obra, os cinco sentidos conhecidos. Por isso em Ambiente I eu usei sons eletrônicos, luzes, cores, objetos táteis e odores”, ele diz.

ASSISTA AO DOCUMENTÁRIO MAESTRO JORGE ANTUNES POLÊMICA E MODERNIDADE

As técnicas do maestro apresentavam, já em 1966, caminhos que deixariam Florian Schneider (do Kraftwerk, que citamos lá em cima) de queixo caído. Apresentações que iriam desde de sons de instrumentos convencionais tocados ao vivo e processados pela parafernália eletrônica comandada por Jorge até autofalantes pendurados por um fio balançando em pêndulo acima dos espectadores, como os botafumeiros da Catedral de Santiago.

Em 1975, parte desta obra foi registrada no disco Música Eletrônica. Nele, estão reunidas as peças Valsa Sideral (1962), Contrapunctus Contra Contrapunctus (1965), Cinta Cita (1969), Auto Retrato Sobre Paisage Porteño e Historia De Un Pueblo Por Nascer (1970). “Naqueles anos, naquele momento em que compus as peças, eu não sonhava em publicá-las em disco: eram obras em fita magnética, daquelas comuns nos anos 1970 e ainda hoje, com a fita sendo reproduzida ao vivo, estando no palco apenas duas caixas de som”, recorda o maestro.

Maestro Jorge Antunes criou em 1975 um disco que deixaria os “robôs” do Kraftwerk de cabelos em pé

À imaginação dos DJs e produtores atuais pode vir a imagem de uma espécie de live PA erudito. Mas o buraco, em um tempo em que para se tirar uma gota de som era necessário um imenso alambique, era bem mais embaixo. “Valsa Sideral e Contrapunctus contra Contrapunctus foram compostas no meu estúdio no Rio de Janeiro. Usei equipamentos amadores: um gravador National, um gravador Grundig, um gerador de ondas dente de serra por mim construído e um theremin, também por mim construído. Cinta Cita, Auto Retrato Sobre Paisage Porteño e História de un Pueblo Por Nascer foram compostas em Buenos Aires, no Laboratório de Música Eletrônica do Instituto Torquato Di Tella, com equipamento profissional: três gravadores Ampex, filtros Bruell & Kjaer, Ring Modulator, envelope follower, geradores Heathkit de onda senoidal e quadrada”, ele detalha.

Jorge Antunes em evento de comemoração ao Dia do Soldado, em Brasília

O estudo da física concomitantemente com o musical, aliado à inquietação revolucionária de Jorge Antunes, abriram portões para experiências inovadoras, como os estudos de relação entre sons e cores que desenvolveu na França, a Cromofonia.

”[A física] influenciou bastante. O meu trabalho com as micromontagens e a espacialização sonora eram bem conscientes, com uma acertada perspectiva para a difusão da obra e sua percepção”, diz Antunes. No documentário Maestro Jorge Antunes, Polêmica e Modernidade, o maestro fala sobre essas experiências em uma entrevista a uma TV francesa: “O verde para mim é uma correspondência calculada matematicamente a partir dos harmônicos. Eu digo que a cor, este movimento vibratório do espectro visível, quando medimos a frequência do verde descobrimos que ela é uma oitava inaudível de um dó. Da frequência de um dó”. E você aí maravilhado por aquela sinestesia que rolou domingo de manhã na ODD…

Música Eletrônica é um classicão da música inovadora brasileira. Ganhou uma reedição no ano passado pela gravadora espanhola Guerssen Records. No entanto, estava passando despercebido pela enorme quantidade de DJs brasileiros. “Todos os DJs e jovens compositores deveriam conhecer as obras que estão no disco, para verem o que já se fazia no século passado e, assim, não inventarem a roda, como muitos fazem hoje”, Antunes dá a dica.

O maestro não parou em 1975. Longe disso. Continua produzindo e experimentando. Dança da Mulher Vermelha, da ópera A Cartomante, é de 2014 e pode ser encontrada no Youtube, assim como Carta Athenalógica (2013), disponível no Soundcloud.

OUÇA CARTA ATHENALÓGIA, DE JORGE ANTUNES

Pergunto se o maestro, que começou com trabalhos eletroacústicos nos anos 60, se familiarizou com a forma de se fazer música eletrônica atualmente, por meio dos computadores: “Sim, me familiarizei com este ambiente e trabalho com ele. O que aconteceu foi a facilidade na construção de novos timbres e a simplificação do processo. As ações continuam as mesmas: colar, cortar, inverter, retrogradar, transformar, filtrar, montar, mixar, processar, etc. Só que virtualmente. O mouse substitui a tesoura e a splicing tape. A partir de 1969 comecei a trabalhar com o sintetizador analógico Sinthy A, da EMS, fazendo música eletrônica ao vivo, com processamento em tempo real de instrumentos acústicos. Hoje faço isso no ambiente digital, dando preferencia ao GRM Tools. Acredito que muita coisa nova ainda possa aparecer na plataforma (digital)”.

Alguém mais aí tem a impressão de que parte considerável desta “coisa nova” ainda virá das ideias deste maestro?

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