Celebrada por Diplo e sampleada por M.I.A., Deize Tigrona trabalha como gari no Rio, mas quer viver da música

Claudia Assef
Por Claudia Assef

Por Claudia Assef
Fotos John Woo, Vincent Rosenblatt e I Hate Flash
Agradecimentos a Fabiano Moreira

Lá pelo ano de 2003, o funk carioca começava a descer os morros do Rio rumo a outras paradas. Foi quando a música eletrônica underground começou a acolher o gênero e, como de costume no Brasil, essa movimentação teve início na gringa, pra só depois contaminar o povo hype por aqui.

Naquele ano, o duo brasileiro Tetine, radicado em Londres havia três anos, me chamou pra escrever o texto do encarte de uma compilação de funk carioca que eles estavam pra lançar pelo selo Mr Bongo, do alemão Daniel Haaksman, um dos pontas-de-lança desse hype do Favela Funk, termo que passou a ser usado pra falar do funk carioca na Europa.

Recebi as músicas do disco e comecei a estudar os artistas. Muitas faixas eu já conhecia, como as clássicas dos anos 90 Rap da Felicidade (Cidinho e Doca) e Feira de Acari (MC Batata) ou as onipresentes e televisivas Cerol na Mão e o Baile Todo, do Bonde do Tigrão, típico som que você conhece, mas nem sabe de onde. Aí eu ouvi Injeção, de uma tal Deize Tigrona, que tinha uma voz potente, cantando sobre uma base meio apocalíptica e letra surrealista falando sobre uma ida ao médico, com óbvia conotação sexual.

Injeção – Deize Tigrona

Caí de quatro pela malandrice da letra, o timbre, a composição toda encharcada de sacanagem, mas num limite de subliminariedade que daria pra tocar numa festinha infantil (ou quase). Fui investigar qual era a da Deise Maria Gonçalves da Silva aka Deize Tigrona.

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Na época eu editava uma revista de música eletrônica chamada Beatz (quem lembra?) e fiquei doida pra entrevista-la. A gente deu várias matérias sobre funk carioca nessa publicação que, a priori, era voltada ao público de techno, house, drum’n’bass etc. Choveram cartas (mentira, só algumas) reclamando, mas a gente mesmo assim deu uma capa pro DJ Marlboro e, sim, eu fui ao Rio de Janeiro entrevistar a Deize. E foi aí que me apaixonei. Nascida em São Conrado e moradora da Cidade de Deus – aquela mesma que você e eu conhecemos pelo cinema – Deize na época era faxineira numa casa de família. Suas composições aos poucos foram caindo nas graças dos gringos e não é que Injeção foi sampleada por M.I.A. e ela depois foi procurada por Diplo, que acabou produzindo duas músicas dela?

Bucky Done Gun, da diva pop M.I.A., bebeu na fonte de Injeção

Agora saca aqui a dobradinha que ela fez com o Diplo

Esse agito todo fez com que ela caísse num hype momentâneo, que a fez viajar pelo Brasil, tocar em São Paulo em clubes como o saudoso Lov.e, se apresentar no Tim Festival, durante show da M.I.A., e ainda sair em turnês européias. É de se imaginar que Deize esteja numa tranquila agora, com a grande quantia de royalties que recebeu até hoje e tal, certo? Negativo.

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“Eu não recebi nenhuma grana pelo sample, não. Nesse tempo que fiquei sem gravar, eu tive que pegar no pesado sim, como pego até hoje. Claudia, talvez você não saiba, eu sou gari aqui no Rio de Janeiro, tem dois anos. Eu tive que adotar uma criança, criança há gastos, filho não pede pra nascer. Estou pegando no pesado e continuo fazendo música”, disse a cantora em entrevista por Whatsapp.

Apesar de dar duro como gari, ela acaba de lançar single novo, é Madame, produzido pelo gaúcho Chernobyl, do Comunidade Nin-Jitsu, em lançamento do selo Funk na Caixa, parceria com o crew Heavy Baile.

“Conheçi a Deize Tigrona durante as gravações do With Lasers, do Bonde do Rolê, que produzi com o Diplo. Ele a chamou a São Paulo para gravar um som, enquanto a gente mixava o álbum. Tocamos juntos no Glória e botamos aquilo abaixo. Em 2007, produzi uma track com ela, Nove Dedos, que saiu pelo selo KSR, do Japão, o mesmo que lançou o CSS por lá. Já tem um tempo que estávamos falando em fazer algo juntos. Quando ela me mandou a acapella de Madame, pensei em unir Miami Bass, beats novos de funk e EDM pesado”, explica Chernobyl.

Madame – Deize Tigrona


Muito antes do funk feminista de MC Carol e Valesca Popozuda ou das divas pop Anitta e Ludmilla, funkeiras trabalhadas no beyoncismo, fazerem sucesso, havia Deize. “Conversei há pouco tempo com a M.I.A. pelo Instagram. Talvez a gente faça algo juntas. Estou tentando conciliar o trabalho pesado com o trabalho artístico e musical. Eu quero voltar com força total. Na real, eu queria ter uma gravadora do meu lado, que me dissesse o que fazer e o que não fazer, para poder compartilhar comigo a minha ideia”, ponderou a guerreira Deize. “Fama, eu já tenho. Só tá me faltando é grana mesmo”, arrebata.

E é por isso que batemos este papo com ela, com muito respeito.

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Music Non Stop – O que você acha do som da MC Carol, tem a ver com a sua pegada, né?

Deize Tigrona – Lógico, tem a ver com a minha pegada. E estou achando muito louco assim, louco de de bom, bom mesmo, no caso o pessoal do Heavy Baile estar fazendo essa produção com a MC Carol, a mais nova MC que está vindo com toda força também, abrindo novas portas aí, para que possam vir outras. Como diz a Alcione, “não deixe o samba morrer”, eu digo: “mão deixe o funk acabar”.

Music Non Stop – Com a grana da faixa que a M.I.A. sampleou você ficou numa boa nesse tempo que ficou sem gravar? Ou teve que pegar no batente pesado de novo?

Deize Tigrona – Eu não recebi nenhuma grana pelo sample, não. O DJ Marlboro alega que ela sampleou a produção, e não a minha autoria. E, sim, eu, neste tempo que fiquei sem gravar, tive que pegar no pesado sim, como pego até hoje. Claudia, talvez você não saiba, eu sou gari aqui no Rio de Janeiro, tem dois anos. Eu tive que adotar uma criança, criança há gastos, filho não pede pra nascer, eu estou pegando no pesado e continuo fazendo música.

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Music Non Stop – A letra dessa música mostra mais uma vez que você quer mais é que as mulheres façam o que bem der na telha. Você acha que as mulheres conquistaram mais liberdade e direitos desde que você lançou Injeção?

Deize Tigrona – A letra da música, ela pede, pede muito assim, mais liberdade, sim, igualdade, só que eu acho que ainda isso é restrito, né, por nós sermos mulheres. Estamos aos poucos, sim, conquistando nosso espaço. A letra dessa música pede que as mulheres tenham mais fala, mais opinião, se imponham mais.

Se tem liberdades e direitos conquistados desde que eu lancei Injeção? Acho que não totalmente, mas, pelo menos, em algumas comunidades, nós ainda somos a voz, nós ainda gritamos mais alto em relação às letras, não somos impedidas de cantar. Na política que está sendo hoje, está havendo, sim, ainda, um tabu entre liberdade de direito. Acho que, devagar, a gente chega lá.

Music Non Stop – Você tem filhos? Se tivesse uma filha, você ia ficar de boa se ela falasse que queria ser funkeira?

Deize Tigrona – Sim, eu tenho filhos. Tenho duas filhas e um adotado, no caso tenho três filhos. E se minha filha viesse dizendo que queria ser funkeira se eu ia ficar de boa? Lógico que eu iria ficar de boa! Eu iria até fazer umas letras pra ela. Na real, eu tenho uma filha de 13, e eu peço pra ela cantar e tudo. Ela pede assim: “não, grava você, canta você, volta, mãe, pelo amor de Deus, olha o que você conquistou”. Queria que, quando ela tivesse mais idade, que continuasse a cantar funk, com putaria ou sem putaria. O funk é como o samba: teve aquele tabu todo, e as portas foram abertas, teve reconhecimento. E assim vai ser o funk: com putaria ou sem putaria, vai ter um reconhecimento, está tendo reconhecimento. Ficaria de boa e muito feliz se minha filha desse continuidade. Hoje em dia, ela tem 13 anos, ela é a mais velha, ela diz que não, mas com aquela vontade de sim, eu sinto isso.

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Music Non Stop – Como foi trabalhar com o Diplo?

Deize Tigrona – Então, naquela época do Tim Festival, Claudia, tudo para mim foi uma surpresa. Eu me encontrava totalmente desorientada e sem saber o que ia acontecer, que ia dar essa repercussão de hoje. Acho que tem uns 10 anos, bastante tempo. Nossa, poxa, foi tudo de bom, ótimo, trabalhar com o Diplo, para a minha carreira, para a careira dele que tem essa continuidade fabulosa. A M.I.A…. Naquela época, eu estava desorientada, e hoje eu vejo a importância disso. O Diplo teve aqui em casa, na Cidade de Deus, junto com a M.I.A., pegaram essa minha filha no colo, que hoje tem 13 anos, ela tinha dois ou três anos na época. Hoje em dia, a minha filha é super fã do Diplo e da M.I.A. Hoje em dia que eu estou vendo o valor de tudo isso. Eu bato naquela tecla de que, quando eu estava naquele palco do Tim, eu totalmente desorientada, fascinada por estar famosa, sem saber no que ia dar. Teve muita repercussão para o meu trabalho. Foi ótimo, foi demais. Se não me engano, acho que a gente vai fazer outro trabalho aí. Estamos lutando pra isso. Ele veio ao Brasil e fez umas perguntas sobre mim e o caramba.

Há pouco tempo, conversei com a M.I.A. pelo Instagram. Há a possibilidade de fazer outro trabalho com os dois. Estou tentando conciliar o trabalho pesado com o trabalho artístico e musical. Eu quero voltar com força total. Na real, eu queria ter uma gravadora do meu lado que me dissesse o que fazer e o que não fazer, para poder compartilhar comigo a minha ideia. Nessa minha caminhada, eu não tive orientação de uma gravadora ou de um empresário para me instruir. Eu acho que, se eu tivesse, eu teria mais reconhecimento e grana e hoje em dia eu não voltaria pro trabalho pesado. Eu quero dar continuidade ao meu trabalho, quero continuar com esse reconhecimento e passando conhecimento a quem se interesse em me ouvir.

Music Non Stop – Que outros artistas do funk você curte ouvir hoje em dia?

Deize Tigrona – Poxa, eu tenho ouvido muito, do funk mesmo, funk de favela, legal, TH e MC Magrinho. Os caras fazem também a minha pegada assim de letra, e é bom curtir e ouvir. Ludmilla eu curto muito Fala de Mim, eu adoro. Anitta eu curto também. Não é que eu fique o tempo todo ouvindo. Eu curto pesquisar o que a galera gosta para ter orientações e a mente aberta. Na maioria das vezes, acabo fazendo o que me dá na telha. Isso também é um problema.

Music Non Stop – Por que você acha que a mulher ainda sofre desigualdades no Brasil?

Deize Tigrona – Eu acho que ainda sofre desigualdade devido à política, não é nem pelo funk ou por outras músicas, não é pela novela, por outro estilo de música. A política quer impor, e a mulherada simplesmente não aceita, e aí acontece esse lance de apontar o dedo contra a mulher. Aos poucos, a gente está mudando isso aí. Aqui no Rio, nós fizemos aquele protesto todo. Eu acho que aqui no Rio os protestos não vêm com tanta força como em São Paulo. Eu converso com a minha família. Há uma diferença, quando lutamos, aqui no Brasil, pelos nossos direitos. Lá fora, o pessoal sai mesmo à rua, bota fogo e o caramba. Aqui no Rio, dizem que devemos fazer protesto sem baderna. Eu acho que, se não tiver baderna, não chama a atenção. Se você faz uma coisa pacífica, eu acho difícil de ter uma atenção. Você chama a atenção quando tem um quebra-quebra mesmo. Não apóio, mas, infelizmente, às vezes precisa para chamar a atenção.

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Music Non Stop – O que vc achou de mais legal nesse som produzido pelo Chernobyl?

Deize Tigrona – Assim como eu fiquei esse tempo sem gravar, eu estou um pouco longe, eu estou também sem ir à Europa. Creio eu que ele, como está na ativa, soube fazer a produção assim para um lado mais dance, europeu, as paradas que tocam lá na Europa e que estão influenciando muito os DJs aqui no Brasil, no Rio e em São Paulo, principalmente. Eu achei ótima a produção dele. Quando eu ía pra Europa pra ficar uma semana, acabava ficando um mês e fazendo contatos, sem falar inglês e o caramba. Depois de um tempo, eu tive ajuda do Giorgio, foi uma aventura louca na Europa, foi tão gostoso. O que eu pretendo é continuar. Fama, eu já tenho, só tá me faltando é grana mesmo.

Claudia Assef

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Autora do único livro escrito no Brasil sobre a história do DJ e da cena eletrônica nacional, a jornalista e DJ Claudia Assef tomou contato com a música de pista ainda criança, por influência dos pais, um casal festeiro que não perdia noitadas nas discotecas que fervilhavam na São Paulo dos anos 70.