Com apenas 24 anos, brasiliense Kurup faz um som eletrônico latino viajante – e estranhamento brasileiro – que você precisa conhecer

music non stop
Por music non stop

TEXTO LUCIO K

Este ano conheci um som que me chamou atenção por ser sensorial, cinemático e viajante, além de muito bem feito. Primeiramente achei que era um som gringo. Pra minha surpresa, era feito por um brasileiro de 24 anos, um DJ/produtor com uma maturidade impressionante pra sua idade. O resto cada um pode julgar por si.

Senhoras e senhores, vos apresento a primeira entrevista disponível online, concedida um pouco antes de sua tour 2017 por 9 países, com o brasiliense Renato Rocha Lima, o Kurup. Antes de partir pra entrevista, dê um play no Soundcloud do rapaz.

KURUP SOUNDCLOUD

MUSIC NON STOP – Você é o tipo de artista que, ao ouvir seu som, dá vontade de saber bem mais sobre. Pode falar um pouco da sua trajetória musical? Começando pela pergunta clichê: Em que momentos da sua vida você sentiu que queria ser DJ e que queria fazer música?

KURUP – Eu comecei com essa história há uns 9 anos, hoje tenho 24. Um dia uma querida amiga minha me veio com essa de fazer um curso de discotecagem com um outro amigo DJ que ela conhecia. Meu primeiro contato foi ali, com um par de CDJs 200 e um mixer DJM 400, daí a gente começou a gravar uns CDs com nossas pesquisas e fizemos um projeto chamado Vice-Versa. A gente era bem novo nessa época, mas botamos a cara e começamos tocando numas festas da cidade. Depois disso continuei tocando sozinho e fiz diversas parcerias com amigos. Mudei muitas vezes a linha de pesquisa musical e provavelmente vou continuar mudando porque gosto muito dessa coisa meio “esquizofônica” de ficar misturando estilos, fazendo colagens entre distintas épocas e lugares. Faz uns três anos que eu enfiei a cabeça na produção e desde então não parei mais. Eu ainda gosto e experimento muita coisa do universo da discotecagem, mas os processos criativos têm tomado cada vez mais tempo, percebo que tenho pesquisado num fluxo menor pra sobrar espaço no dia pra criar e compor.

MUSIC NON STOP – Qual a sua formação musical?

KURUP – Toco quase nada de piano e saco só o básico de teoria musical. Tenho uma noção sobre como funcionam as escalas e aprendi um pouco sobre harmonia e arranjo com amigos meus que estudaram seriamente a teoria. Do âmbito acadêmico sei pouco mesmo, eu enfiei a cabeça na intuição e na experimentação, acho que o que aprendi até agora foi meio na marra. Me lembro de uma entrevista com o Tom Zé que ele começa dizendo que acha que o que mais o ajudou na sua carreira é que ele se achava um péssimo músico (risos), acho que compartilho um pouco desse sentimento. Claro que é uma brincadeira, mas tem uma ironia presente aí que diz bastante sobre a trajetória de muitos artistas na música eletrônica. Muita gente caiu nesse espaço querendo explorar microtonalidades e pensar em música de outra forma. As ferramentas disponíveis te oferecem recursos e te limitam ao mesmo tempo. Sintetizadores, máquinas de bateria e o recente mundo digital abriu portas para novas possibilidades rítmicas (ou arrítmicas), harmônicas (ou dissonantes). A prática e o experimento repetitivo se tornam estudos. Eu vou muito de ouvido. Muitas vezes dá errado, claro. Mas assim que é bom! (risos)

MUSIC NON STOP – Nascido e criado em Brasília? Qual é sua relação com São Paulo?

KURUP – Nasci em Brasília e vivi a vida toda por lá. Me formei em Artes Visuais pela UnB no final do ano passado e depois dessa resolvi passar uma temporada em SP pra experimentar e me conectar com o pessoal de lá. Em Brasília não consigo tocar nem uma vez por mês direito, em SP são algumas vezes por mês. Existe esse estímulo porque tem mais mercado por lá. Mas não é só a discotecagem e a performance musical que me atraem. Tenho buscado trabalhar com trilhas pra teatro, cinema, vídeos… Meu sonho seria conseguir me virar só com música e projetos audiovisuais.

Kurup acredita que a maturidade que se ouve em seu trabalho vem de duas frentes: sorte e suor

MUSIC NON STOP – Quem ouve seu som sente uma maturidade nas suas produções, como se você soubesse exatamente o que quer, nos mínimos detalhes. Como essa maturidade se deu pra você em relativamente pouco tempo como produtor?

KURUP – Eu não acredito muito em talento ou dom. Mas eu sei que existe uma coisa chamada empenho e outra que é privilégio. Pra você fazer algo bem feito tem que se esforçar, mas nem todo mundo tem a chance de fazer isso e muitas vezes nem tem a oportunidade de descobrir seus próprios gostos e afinidades. Eu tive a sorte de nascer numa família com artistas próximos de mim e boas condições. Não nasci em família rica mas também não tive que trabalhar enquanto estudava. Reconheço que deu pra gastar muito tempo aprendendo e praticando em casa e que tive diversos estímulos. Todo esse contexto me fez enfiar a cara nos estudos e na prática. É sempre um pouco difícil dar o primeiro passo, mas se você sente prazer no que faz não quer parar mais. Arte é como qualquer outro trabalho: tem que suar e pesquisar muito pra ficar legal.

Eu também recebi muita ajuda e apoio de pessoas que acreditaram no meu trabalho. Em Brasília tem a Delírio Tropiquente, e a Selva Elétrica, onde o Kurup surgiu, há três anos ao lado da Cecília (Linda Green) e do Miguel (Elefunk). Depois disso me juntei com o coletivo IMÃ pra pirar no audiovisual e saindo da minha cidade veio a Tropical Twista (SP), a Frente Bolivarista (RJ) e a Sonido Trópico (SP). Ultimamente tenho feito uma festa em Brasília chamada Limbo, que reúne muitos estilos de música num evento só. Toda essa galera é como uma família pra mim. São pessoas que se interessaram e acabaram virando grandes amigos. Eu provavelmente não teria levado a produção pra frente se não fosse por todo um contexto favorável. Resumindo, acho que se alguém percebe maturidade no meu trabalho é porque eu sou um baita dum sortudo privilegiado e também porque passei incalculáveis horas garimpando informação e praticando. Sorte e suor.

Tocando na festa Delírio Tropiquente, em Brasília. BPMs mais lentos mas não por isso menos festivos. Foto: Pedro Lacerda

MUSIC NON STOP – Que nome daria pro gênero que você faz? Downtempo? Easy Listening?

KURUP – Eu curto bem mais downtempo que easy listening. Downtempo pra mim revela que a intenção musical tem tempo baixo, que na visão do autor ou da pessoa que atribuiu a categoria, a música soa lenta. Mas isso não implica a agradabilidade, ou facilidade em ouvir. Acho easy listening algo muito subjetivo. O que pode ser fácil e agradável pra você escutar pode não ser pra mim e vice-versa. Pra ser sincero tenho problemas com a categorização excessiva. Prefiro que os outros façam isso do que eu mesmo. Categorizar, descrever e contextualizar é um trabalho importante e deve ser feito por alguém com preparo para tal. Acho que eu mesmo não tenho muitas condições de descrever meu próprio trabalho muito além das minhas impressões pessoais que são bem íntimas e afetivas, portanto subjetivas. Também acho difícil atribuir um gênero ao que eu faço. Se eu tivesse que escolher algum, botava o Kurup na categoria de eletrônica e pronto. Bom que não quer dizer quase nada, só sobre os meios de produção (risos).

Capa do EP Macaúba EP, com arte de capa de Daniel Matsumoto, lançado pela Tropical Twista Records

MUSIC NON STOP – Qual a porcentagem aproximada de inspiração vs. suor nas suas produções? E quanto tempo em média você leva pra fazer uma música do início ao fim?

KURUP – Putz, aí me pegou! Não sei se consigo distinguir a inspiração do suor. Numa mesma música eu tenho momentos de muita fluidez e clareza e momentos árduos em que você trabalha, trabalha e parece que nada acontece. Eu acho que levo um mês pra fazer uma música, mas eu faço umas três ou quatro ao mesmo tempo. Fico trabalhando numa e quando canso, pulo pra outra pra refrescar o ouvido, daí volto e por aí vai. Tem projeto que eu esqueço e retomo um tempão depois. Difícil mensurar.

MUSIC NON STOP – Quando você vai criar, imagina algum contexto pra sua música? Por exemplo “música sensorial pra se ouvir em coletivo em grandes sistemas”, ou “música pra ouvir em casa viajando”?

KURUP – Eu penso muito em situações. Não tanto num contexto da vida real, eu penso mais na história que se passa por trás de cada faixa que tô produzindo. Eu faço música pensando em imagens, em ambientes, atmosferas, narrativas, personagens etc. Eu curto muito arquitetura também. Fico imaginando muitas estruturas, casas, templos, santuários. Acho que tenho uma bagagem muito lúdica dentro de mim. Brinquei muito (e brinco ainda!) tanto com videogames quanto fora de casa, na rua. Gosto de manter viva essa energia imaginativa e inventiva que as crianças têm. Fazer música pra mim é algo meio fantasioso, surreal.

Kurup sobre suas produções: “a discoteca brasileira é clandestina. É marginal. A gente bota na pista o que der na telha”

MUSIC NON STOP – Seu processo de criação é mais pensar em ideias e realizá-las ou ir experimentando coisas pra ver o que funciona?

KURUP– Acho que uma boa parte do processo é bastante experimental. Eu jogo um monte de coisa dentro de um projeto e daí vou tirando o que eu acho desnecessário. Gosto muito desse processo escultural de subtração. A simplicidade é uma virtude, então eu tento “limpar” muito minhas ideias, tento deixar apenas o fundamental! A outra parte do processo é bastante mental e conceptiva. Eu fico cozinhando umas imagens e uns sons na cabeça um tempão, sabe? Fico tentando relacionar sons com lugares e narrativas. De uns tempos pra cá eu tenho tentado ser mais cauteloso pra não bagunçar muito os projetos. Estou buscando tratar cada instrumento e cada som com mais carinho e atenção. Como falei ali em cima, eu penso muito em imagens. Fico sempre cultivando uns espaços-ambientais na minha cabeça e daí tento interpretá-los no mundo daqui com sons.

Capa do EP Minguante EP com ilustração de Willian Santiago

MUSIC NON STOP – Qual a sua DAW e qual a sua fonte preferida pros synths que você usa?

KURUP – Eu comecei brincando no Cubase, mas fui rápido pro Ableton e acho que não largo ele nunca mais. Eu adoro os nativos. Uso muito Operator e o Analog. De plug-ins meu preferido é o Kontakt, uso muito ele pra instrumentos acústicos e étnicos e também tô curtindo muito o Diva ultimamente, que é um synth digital com uns timbres lindos.

MUSIC NON STOP – Você explora uma onda bem sensorial no seu som. Como vê a relação de enteógenos [alteradores de consciência] com sua música? Algum serve como uma “ferramenta” auxiliar pra suas criações?

KURUP – Acho que me inspiro muito nas experiências que já tive na vida com enteógenos, mas gosto de produzir tomando muita água e no máximo um chá ou café. Corpo e mente limpas pra trabalhar.

MUSIC NON STOP – Muita gente nunca viu música tão “lenta e viajante” nas pistas. Como é isso de tocar um estilo que muita gente considera “ambiente” em uma pista de um festival, por exemplo?

KURUP – Eu comecei produzindo música sem pensar nisso, só colocando umas ideias pra fora. Mas hoje eu tenho pensado mais em adequar minhas ideias para pistas de dança. O lance é que eu sempre curti dançar e sempre dancei música de todo jeito, sendo rápida ou devagar. Muitas vezes baixar o tempo traz algo mais envolvente ou hipnótico. Também existe uma característica nos ritmos latinos e afrobrasileiros de eles se encaixarem bem no mid e no low tempo. Tem que ter respiro entre o toque de um bumbo e outro pra a gente suingar e rebolar. Eu não preciso de uma música que fique constantemente me lembrando que vim dançar e me divertir, gosto de curtir todos os tipos de sentimentos enquanto danço, também existe beleza na tristeza, na solitude e na calma. Esse conceito de “pista de dança” tá muito ligado à ideia da discoteca e dos clubes europeus ou norte-americanos. A discoteca brasileira é clandestina. É marginal. A gente bota na pista o que der na telha! (risos)

MUSIC NON STOP – E no Brasil, as pessoas estranham? Entendem logo e entram na onda, dependendo do lugar e do público?

KURUP – Em qualquer parte do mundo que eu tenha tocado, dependeu muito da situação. Eu sempre curti ser meio camaleão, faço aquela leitura do público e se a situação não estiver tão favorável assim pra malemolência eu subo a velocidade e entro numa onda mais animada. Mas fico tangenciando os limites, aos poucos você vai envolvendo a pista e de repente tá todo mundo dançando devagarzinho e nem percebeu! Na música eletrônica existe um costume em “segurar” o BPM e ir subindo ele sempre. Eu não tenho feito isso sempre. To curtindo muito variar durante a performance. Tô segurando o pessoal perto dos 100 BPM e do nada eu quebro tudo num break e volto aos 80, depois subo de novo e por aí vai.

Velocidade também não determina a energia que a faixa tem, é que muitos gêneros na música eletrônica têm parâmetros de andamento pré-determinados, existem tempos comuns. Às vezes o tempo pode até não ser tão lento, mas eu entro numas temáticas oníricas e soníferas, tem muita gente que estranha dançar música mais contemplativa ou lenta, com certeza. Numa festa, penso que pra galera entrar na onda de um determinado som, tem que haver uma proposta ambiental que seja equivalente com a música. Se você mostra através de outros recursos que ali tem uma intenção performática ou experimental, as pessoas compram a ideia. Também tudo muda se você tá dentro de um clube escuro cheio de estrobo, confusão e uma proposta pra chacoalhar o esqueleto ou se você tá na natureza ao ar livre. Existem muitos tipos de festa, claro. Nem todo mundo tá buscando esses lugares do entretenimento só para ter experiências artísticas. Tem muitas funções sociais dentro desses espaços.

MUSIC NON STOP – Quais os lugares que você mais gostou de tocar até hoje?

KURUP – Eu gosto muito de tocar na natureza. Por isso a sensação de tocar em festivais é inigualável. Primeira vez que eu fiz uma performance toda com música autoral foi no Festival Nômade, este ano, no Chile. A pista na beira da praia de encontro com o rio. Visual lindo demais e gente muito a fim de escutar o que eu quis propor. Foi incrível. Também lembro muito de festas bem pequenas que toquei com muitos amigos próximos e uma energia boa. Eu adoro festa pequena e intimista. Curto estar bem perto da pista e das pessoas. No momento estou fazendo minha primeira turnê na Europa. Eu vim em meados de junho e volto só no final de setembro. Foi legal demais perceber o quanto as pessoas foram receptivas, rolaram convites e feedbacks. Eu não acreditei muito no começo mas com o tempo as coisas foram acontecendo e de repente tô com mais de 20 datas confirmadas em 9 países diferentes. As primeiras datas que toquei aqui me surpreendi com a energia e a resposta da galera. Claro que existe um hype em cima do “exótico” (que para o povo europeu, no caso, somos nós), então a galera fica curiosa pra ouvir o som lá de longe, da tal América Latina.

MUSIC NON STOP – Pode falar quatro artistas que são suas maiores influências musicais? E mais quatro produtores em qualquer gênero que você admira?

KURUP – É difícil listar preferências e referências porque as minhas mudam constantemente, mas no contexto internacional sou muito fã do trabalho da galera que tá por trás dos núcleos nacionais que citei lá em cima e também coisas da VoodooHop, Shika Shika, Multi Culti, Laut und Luise, UCR, Lump, Wonderwheel, Akumandra etc. Com certeza tem vários outros núcleos que gosto muito e não comentei aqui. Eu escuto muita coisa diferente, mas acho que passo mais tempo ouvindo música brasileira, jazz e ambient do que música eletrônica dançante. Acho difícil listar artistas e gêneros, mas minha maior influência com certeza vem da música brasileira e africana. De todas as épocas e momentos. Recentemente achei toda a discografia que foi lançada pelo selo Marcus Pereira Discos, por exemplo. Tenho ouvido ela de cabo a rabo, só música popular e tradicional brasileira. Curto muito as expressões populares e demais trabalhos inspirado nelas. Parece que estas conversam comigo mais de pertinho que muita outra coisa. Tenho escutado Papete, Comadre Fulozinha, Juçara Marçal, Paulo César Pinheiro, Quinteto Violado e por aí vai…

JUÇARA MARÇAL – OGUM

MUSIC NON STOP – Dá umas dicas musicais pra gente?

KURUP – Eu gosto muito de pegar umas dicas com amigos, sempre pergunto por indicações. Ultimamente tenho escutado muito um álbum do projeto The Caretaker chamado An Empty Bliss Beyond This World, ele cata uns sons clássicos nostálgicos e dá uma editada, faz uns loops e uns cortes abruptos, joga umas camadas de ruído com bastante reverb, uma viagem! Parece música de elevador levada a sério. To ouvindo direto também o álbum Mississipi to Mali do Corey Harris. Bom demais, bem raiz. Sou fã de Mulatu Astatke, tem um álbum dele com o grupo Heliocentrics que é animal, tenho escutado esses dias.

The Caretaker – An Empty Bliss Beyond This World

MUSIC NON STOP – Lista pra gente a sua discografia completa oficial e onde as pessoas podem comprar?

KURUP – No meu Soundcloud tem todos os links! Tenho músicas disponíveis para compra e download no meu bandcamp pessoal, faixas soltas no Soundcloud e links para lançamentos em gravadoras disponíveis online.

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