Além da Copa. Cinco belas histórias para nos lembrar porque amamos futebol
A Copa do mundo do Qatar está cheia de polêmicas. Mas o futebol é muito maior!
Concordemos, não está sendo fácil acompanhar o futebol na Copa do Mundo do Qatar, a primeira realizada no final do ano, por questões climáticas.
Além do país sede ser alvo de uma enxurrada de denúncias por explorar os trabalhadores responsáveis por erguer, a repressão regulamentada contra mulheres, gays e a proibição de qualquer comportamento que considerem “impróprio”, sob uma ótica medieval, desagradou à imprensa, turistas e jogadores que estão sendo obrigados a conviver com a paranoia dos “valores da família”, vigentes por lá.
A FIFA, entidade privada sediada na Suiça e dona dos principais campeonatos de equipes e seleções no mundo, ajuda na tarefa de potencializar a antipatia com a copa, vetando manifestações contra o preconceito racial e LGBTQIA+ de uma forma infantil: Está proibindo, por exemplo, que os capitães das seleções europeias entrem em campo com uma braçadeira com as cores do arco-íris, parte da campanha contra a ignorância One Love.
O receio da FIFA em desagradar os anfitriões certamente não é recíproco. Afinal, o Emir Tamim bin Hamad al-Thani, que ganhou o país de presente do pai em 2013, Hamad bin Khalifa Al Thani, esperou todos os turistas chegarem ao país para então proibir, a dois dias do início da competição, a venda de bebidas alcoólicas.
Mostrando ao mundo que ninguém suporta mais certos tipos de comportamento, jogadores e torcidas andam dando aula. O capitão da seleção da Inglaterra Harry Kane, ao ser proibido de usar a braçadeira colorida, mandou fazer às pressas outra, com as palavras No Discrimination e jogou com ela. Outros capitães seguiram seu exemplo: Virgil Van Dijk (Holanda) e Gareth Bale (País de Gales) usaram a mesma braçadeira.
Enquanto isso, nas arquibancadas, o “dane-se a FIFA e suas regras” também rolou: torcedores do Irã levantaram cartazes em favor dos direitos das mulheres durante o hino nacional, que não foi cantado pelos jogadores em solidariedade à sua torcida.
Só que o futebol é muito maior do que a Copa do Mundo e, por mais que a empresa suiça odeie admitir, também maior que a FIFA. É nos terrenos baldios, ruas e morros que nascem e crescem os jogadores. E é lá, também, onde vivem seus torcedores. Para cada take de câmera mostrando estádios e estruturas caríssimas, há milhares de pequenos times, jovens sonhadores e seres humanos apaixonados pelo esporte mais popular do mundo, capaz de gerar histórias capazes que dão alegria e esperança à nossa sofrida existência.
Eis cinco histórias que te farão lembrar que o futebol é muito legal:
O Milagre de Natal
Durante a Primeira Guerra Mundial, um evento inesperado (e não autorizado pelo alto comando de nenhum país envolvido) tomou conta dos soldados alemães, franceses e ingleses que lutavam na região de Neuce Chapelle. No front, inimigos entrincheirados estavam separados por poucas centenas de metros, esgotados após um enfrentamento que já levava cinco meses.
Na semana que antecedeu o natal daquele ano, os soldados e oficiais decidiram (por iniciativa dos alemães) um cessar-fogo “informal”. Ninguém atacaria até o fim do natal. O que se relata, desde então, foi que os homens deixaram suas trincheiras e começaram a confraternizar entre si. Trocaram presentes, tabacos, fizeram cerimônias em homenagem aos soldados mortos e até festas.
Um evento, no entanto, se destacou no cessar-fogo. Um jogo de futebol no campo de batalha, entre Inglaterra e Alemanha, até hoje um dos maiores clássicos da Copa do Mundo. Os relatos são um pouco confusos, e acredita-se que vários jogos aconteceram em diversos locais ao longo do front. Mas a “batalha futebolística” mais famosa, a que rendeu resenhas apaixonadas dos soldados afeitos a escrever, foi um Inglaterra 3 x 2 Alemanha. Esta é a versão “oficial”, eternizada pelo escritor Robert Graves, testemunha ocular da partida.
O time brasileiro que parou uma guerra civil na África
No final da década de 60, as informações viajavam o mundo, principalmente, através dos jornais e revistas impressas. Quando se tratava do futebol, cronistas cheios de talento assistiam às partidas e narravam, em textos cheios de poesia e paixão, a emoção das partidas que haviam testemunhado.
Foram estas narrativas que correram o mundo, transformando o Santos F.C. no clube mais famoso daquela época, em uma espécie de rockstars. O time excursionou por vários anos consecutivos para a Europa, recebendo cachês para jogar contra times locais. Para se ter uma noção do romantismo gerado pelas notícias que, na contracapa do livro Um Time dos Céus, de José Roberto Toledo e Marcos Aurelios Pimenta, há uma foto de um enorme cartaz, sustentado em um cavalete de madeira no meio da praça central de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, com o anúncio: “El mayor espectaculo del mundo! Presentacion del Santos Futbol Club, con la maxima expresion futbolistica Pelé”.
Em 1969, durante uma excursão pela África Ocidental, o Santos desembarcou na Nigéria para mais uma “apresentação”. O jogo aconteceu em um estádio destruído (e lotado), sem nenhum incidente, além da derrota óbvia do time local. Foi somente em 1990, quando a revista Placar entrevistou os responsáveis nigerianos por aquele evento, que se descobriu que um cessar-fogo entre o governo vigente e os rebeldes separatistas em Benin. O acordo foi selado para que o time pudesse chegar e sair da cidade em segurança.
Há uma outra versão desta história, pesquisada pelo antropólogo José Paulo Florenzano. A de que o time foi levado à Nigéria pelo governo local, e usado como peça de propaganda. O conflito com os Biafrenses separatistas durou quatro anos. João Paulo I, John Lennon e Joan Baez já haviam se manifestado publicamente, pedindo o fim do conflito. Mas quem foi até lá, desembarcou em Benin e fez a alegria do povo, foi o time do Santos.
Um jogador, sozinho, acabou com o conflito na Costa do Marfim
Em 2007, 0 jogador marfinense Didier Drogba era o mais ilustre cidadão do seu país. Ídolo dos gramados europeus, Drogba também defendia a seleção da Costa do Marfim, apesar de também ter cidadania francesa.
Naquele ano, seu país disputava a Copa das Nações Africanas e amargava cinco anos de uma sangrenta guerra civil, que separava a região norte do país, dominada por rebeldes e lideradas por Guillaume Kigbafori Soro, contra o regime estabelecido de Laurent Koudou Gbagbo, que ainda controlava o sul do país.
Quando Drogba soube que seu país enfrentaria Madagastar em casa, fez uma exigência, publicamente: o jogo teria de ser disputado no estádio Bouaké Stadium, em Bouaké, cidade sede das tropas rebeldes.
A paixão pelo futebol falou mais alto, então, do que o ódio étnico. Um cessar-fogo foi acertado entre Gbagbo e Soro, que assistiram o jogo, lado a lado, no estádio. Um tanque de guerra rebelde escoltou a seleção até o campo de jogo. Aquele evento iniciou um diálogo pela paz. Os rivais apertaram as mãos e decidiram, pouco tempo depois, encerrar o conflito. Guillaume Kigbafori Soro foi primeiro ministro do país até 2020.
Costa do Marfim goleou Madagastar por 5 a 0. No dia seguinte, os jornais nacionais noticiaram: “Cinco gols para acabar com cinco anos de guerra”.
A Democracia Corinthiana
A “democracia corinthiana” surgiu, originalmente, para resolver problemas internos do Esporte Clube Corinthias. O time vinha sofrendo com más campanhas na virada dos anos 80 e uma convergência de acontecimentos – mudança na presidência, a contratação de um jovem sociólogo, Adilson Monteiro Alves, e a influência do publicitário Washington Olivetto – desembocou nos vestiários, chegando a jogadores com uma inteligência social acima da média para o mundo do futebol: eram Casagrande, Sócrates, Wladimir e Zenon.
Atentos ao movimento pelas Diretas Já, que lutava pela volta das eleições com voto popular, a turma resolveu instituir, no clube, uma espécie de auto-gestão. Os jogadores votariam para decidir, desde novas contratações, até regras de conduta que proibiam, por exemplo, a expressão de suas opiniões políticas. O próprio nome do movimento “democracia corinthiana”, era um eco das vozes das ruas.
E foram estas opiniões políticas que fizeram do movimento surgido no vestiário uma dos mais potentes armas que combateram a ditadura militar. Blindados pelo enorme prestígio que tinham, e o apoio de uma nação de torcedores, os jogadores começaram a ir aos palanques e exigir que o direito de escolha, já estabelecido no clube, fosse dado também ao eleitor brasileiro.
Assim como fez Drogba anos depois, Sócrates e sua equipe sabiam do poder de sua voz e a influência do posicionamento político. Hoje, a democracia é dos torcedores de todos os times.
Os campeonatos ‘paralelos’
Finalizando nossa lista, histórias que nos mostram o verdadeiro sentido do esporte. A união dos povos. Muitos eventos acontecem fora do grande circo bilionário da Copa do Mundo. Sem patrocinadores gigantescos, sem contratos duvidosos e, principalmente, movidos pela paixão ao futebol.
Os mais encantadores são, justamente, aqueles organizados para reforçar o orgulho identitário. E diversos exemplos são encontrados ao redor do mundo.
Desde 2012, no Chile, é realizado o Campeonato Nacional de Povos Originários. Participam as seleções de povos ancentrais da América do Sul com os Rapa Nui, os Quechua e os Mapuche. Oito seleções participaram da última edição, voltada a reconhecer e unir os povos andinos.
No Brasil Amazônico, comunidades indígenas como os Kaiowá, Guarani, Bororo, Pataxó e Yanomami também jogam futebol. As seleções viajam dias pelo rio para as sedes, em jogos que são marcados na época sem chuvas, quando os campos não estão alagados. O lema do torneio é: “o importante não é competir, é celebrar”.
A Taça das Favelas é organizada desde 2011 pela CUFA (Central Única das Favelas), e reúne comunidades de todo o Brasil. A taça já teve uma final jogada no Estádio do Pacaembú e sua mais recente edição, em 2022, foi transmitida ao vivo pela SporTV. Vários jogadores profissionais foram revelados na Taça das Favelas.
Elas não disputam campeonatos, mas são apaixonadas por praticar o futebol. As camponeses andinas – chamadas de Mamachas, no Perú, e Cholitas, na Bolívia – praticam o esporte no meio das plantações, no alto de montanhas ou em campos das comunidades mais pobres. Vestidas com as roupas tradicionais da região. Nada de calção e camiseta, o negócio é saia comprida e colorida!