Chet Baker Foto: Bobby Willoughby/Reprodução

Como um disco de Chet Baker me ensinou que o amor existe

Adriana Arakake
Por Adriana Arakake

Adriana Arakake narra sua profunda relação com obra do lendário jazzista; nos 70 anos de Chet Baker Sings and Plays, obra ganha reinterpretações de músicos do mundo inteiro

No começo dos anos 1990, quando descobri o jazz, comprei dois discos que mudaram minha vida. Um deles era uma coletânea de Chet Baker. Lembro exatamente da primeira vez que coloquei o vinil pra tocar — e alguma coisa em mim se partiu. Uma quebra boa. Desde então, Chet me diz (com som, não com palavras) que o amor em que eu acreditava existe sim: visceral, delicado, corajoso. O tipo de amor que não pede licença pra ser sentido.

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Chet cantava, e eu entendia. Tinha uma dor ali, mas não era amarga. Era a dor bonita de quem já perdeu alguém que amou muito — e transformou isso em beleza. Naquela voz falha, quase tímida, ouvi tudo o que sempre quis dizer, mas nunca soube como. E foi exatamente isso que ele me ensinou a cada nota: que sentir é mais bonito do que acertar.

Alguns anos depois, fui atrás de conhecer mais. E foi aí que encontrei Chet Baker Sings and Plays with Bud Shank, Russ Freeman and Strings, lançado em 1955. Um disco que não apenas confirmou tudo o que eu já sentia — como elevou a entrega de Chet a um nível ainda mais profundo. Porque ali, ele não gravou só um disco. Ele gravou a si mesmo. Um pedaço da alma, arrancado devagar.

Antes disso, Chet já era uma das figuras centrais do West Coast jazz. Ganhou notoriedade com o quarteto de Gerry Mulligan (1952–53), um grupo sem piano que deixava espaço para o silêncio — o terreno ideal para a contenção lírica do seu trompete. Em 1953, começou a gravar com Russ Freeman, seu pianista mais fiel naquele período. E no ano seguinte, ousou cantar em Chet Baker Sings, sua estreia como vocalista. A recepção foi dividida: críticos se incomodaram com a fragilidade da voz, mas quem escutava com o coração, entendeu.

Em Sings and Plays, esse lirismo vai ao extremo. A voz introspectiva e o trompete melancólico de Chet são acompanhados por cordas — cello, harpa, flauta — em arranjos que não domesticam, mas respiram com ele. A escolha do repertório diz tudo: Let’s Get Lost, You Don’t Know What Love Is, I Wish I Knew, This Is Always. Canções de amor, sim — mas de um real, imperfeito, com rachaduras, intenso.

O disco foi gravado em duas sessões nos estúdios da Capitol, em Hollywood. A primeira, em 28 de fevereiro de 1955, reuniu Bud Shank (flauta), Russ Freeman (piano), Red Mitchell (baixo), Bob Neel (bateria) e uma seção de cordas com Kurt Reher e Corky Hale. A segunda, em 07 de março, foi ainda mais crua — um quarteto, com Carson Smith no baixo. Intimista como uma confissão feita no escuro.

A lista de faixas parece escrita por alguém que já sofreu demais pra fingir. São baladas em que a melodia não sobe — ela afunda. Nada é heroico. Nada é exagerado. Chet tinha 25 anos e, nesse disco, se permite soar vulnerável até o limite. Quem ouve Grey December ou Someone to Watch Over Me sabe: não é apenas um músico tocando ou cantando. É alguém contando sua história sem filtros, com a beleza de quem não tem mais onde se esconder.

Chet Baker

Chet Baker ao lado da segunda esposa, Halema. Foto: William Claxton/Reprodução

Na capa, Baker aparece de paletó claro, em pose ensaiada. Mas quando a agulha encosta no vinil, tudo rui. O que vem não é apenas jazz. É um som que sangra devagarinho. Um canto que não suplica, mas também não se defende. Chet não interpreta — ele se entrega. E quando você percebe, já está dentro: do disco, da dor, da ternura, do silêncio entre as notas.

A crítica norte-americana da época, como de costume, ficou desconcertada. Ele era pop demais para o jazz, jazz demais para o pop, sensível demais para o padrão masculino vigente. Mas o disco foi um sucesso comercial, especialmente na Europa, onde ele encontrou seu público mais devoto. Com o tempo, ficou claro: ele não era indefinido — era apenas livre.

Em 2023, a Blue Note relançou o álbum em vinil mono de 180g na série Tone Poet, com remasterização analógica impecável. Um relançamento que não é apenas celebração, mas reafirmação: a música verdadeira o tempo respeita. Em 2025, Chet Baker segue reverberando. Para celebrar os 70 anos de Chet Baker Sings and Plays, os selos Decca e Blue Note lançaram Chet Baker Re:imagined, uma coletânea que reúne artistas do mundo inteiro — como dodie, Matt Maltese, Ife Ogunjobi e Puma Blue — em versões pessoais e ousadas dos clássicos. O projeto não busca replicar o álbum original, mas dialogar com sua essência e sensibilidade, explorando outras estéticas, do afrobeat em Speak Low ao balanço latino em Old Devil Moon.

Hoje, o que ainda impressiona ao ouvir Chet Baker Sings and Plays não é a afinação. Não é a técnica. É a entrega. É como se ele cantasse só pra você. É aquela carta que você escreveu pra alguém que amou, mas nunca teve coragem de enviar.

Talvez seja tudo isso. Ou talvez Chet Baker seja só um aviso: de que é possível ser inteiro mesmo quando se está quebrado.

Chet era isso. Um homem entre o vício e a delicadeza, entre o romantismo e o abismo. E esse disco, lançado pela Pacific Jazz no verão de 1955, é a moldura perfeita dessa dualidade. Ali, ele canta e toca como se não soubesse separar as duas coisas. Como se respirar já fosse música.

Nunca quis brilhar. Ele só queria dizer o que sentia.

E dizia.

Sem levantar a voz.

Algumas músicas não terminam quando acabam.

Assim como esse disco.

Assim como Chet Baker. 

Adriana Arakake

Adriana Ararake é DJ e a especialista em jazz, soul e blues do Music Non Stop.