Malka Malka – foto: divulgação

“Canto a personagem que eu quero ser” – Malka fala sobre seu álbum de estreia, Chão

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Tarimbada nos estúdios e com trânsito por diversos gêneros musicais brasileiros, Malka debuta com seu álbum “Chão” trazendo, claro, tudo o que aprendeu na música

Malka Julieta não tem nada de “novata”. Produziu para um monte de bambas que vão de Marina Lima e Matheus Aleluia, passando por grandes nomes do rap, funk, forró, piseiro e o que mais entrar em seu projeto de libertação artística. Ainda assim, um primeiro álbum na frente de batalha, cantando suas letras e composições, é digno de importância na vida de qualquer artista. E este é o momento que Malka, que acaba de lançar seu álbum de estreia, Chão. Um compilado de histórias sobre diversão, luta, resistência e muita libertação. “Canto a personagem que eu quero ser, e não quem eu sou”, nos conta na entrevista que deu ao Music Non Stop. Um marco em sua carreira e, em suas próprias palavras, “só o começo”.

Jota Wagner: me conta um pouco da história de “Chão”, seu primeiro álbum?

Malka: olha, essa coisa de cantar nunca foi muito a minha. Gosto de produzir cantores. Então, comecei a escrever algumas letras com a Deize Tigrona. E ela me disse, “amiga, você tem qeu cantar. A Brisa Flow me falou a mesma coisa. Também, aconteceu de eu assistir a um documentário contando a história do hip hop e do DJ Kool Herc, que discotecava e fazia freestyles no microfone. Eu estava fazendo meus live sets em raves, e comecei a improvisar na vós também, ter umas ideias de bordões, uns chavões. Das quinze músicas do álbum, te digo que nove nasceram nas pistas de dança. Acabei me inscrevendo no edital da Natura Musical, que acabou passando. Então, “tive” que fazer o disco.

Capa do disco Chão, de Malka

Imagem: divulgação

Você pensou nessa experiência das pistas de dança para fazer o disco?

Eu tenho uma experiência de 20 anos na pista de dança, uma trajetória ao mesmo tempo bacana e traumática. Quando comecei a tocar funk, 10 anos atrás, eu era meio escorraçada porque ninguém tocava isso. Agora, o funk entrou com tudo. Todos os DJs precisam tocar uma fixa de funk. E eu sempre quis trazer outras coisas para o set também, como o brega, o forró. Nos últimos anos parei de tocar um pouco em rave e comecei a fazer música eletrônica em outros ambientes. Tenho um projeto paralelo de afrobeat com música latina. Quando fui fazer o disco, quis quebrar estas regras de Techno, Berlim, Europa… a gente vive no Brasil! A gente tem batuque.

O disco é de música eletrônica, mas bem abrasileirado. uma brincadeira com funk misturado com house, com jazz brasileiro. Dichavei tudo em diversas coisas juntas. A ideia é trazer novas perspectivas dentro da música eletrônica.

Eu converso com muito DJ gringo e sempre falam de como a música eletrônica brasileira (o funk) estão no auge lá fora. A gente ainda precisa da validação de fora para se achar bom?

Com certeza, a gente tem essa síndrome de vira-lata que é triste. Dentro da minha carreira, sempre tentei despontar com as coisas mais atuais que as pessoas estão fazendo. Morei em Natal há três anos. Fazia som com Potigurara, Luiza e Os Alquimistas, essa pegada do brega punk, que é o synth pop brasileiro. No começo, o pessoal torce o nariz, mas daqui a pouco isso e o funk vão estar tocando em todos os lugares. O playboy, cis, branco, não quer ouvir isso. Ele só quer a House de Chicago e o Techno de Berlim.

Até porque só ele tem grana para visitar esses lugares…

Pois é. A gente não tem de fazer música para gringo ouvir, mas sim para curtir na nossa pista, que é cada dia mais diversa. Tem que quebrar paradigmas e misturar de um jeito nosso. Largar um pouco essa ideia de que é referência para eles. A referência é nossa, feita por nós mesmos e eles que depois copiem.

O álbum tem um belo time de colaborações. O que um artista precisa ter para te chamar a atenção?

Olha, esse negócio é muito doido. Eu poderia ter chamado artistas mais mainstream, com quem eu já trabalhei junto. Com quem tenho contato e amizade. Mas eu fiz esse disco em uma época muito difícil pra mim. Tenho um problema de coluna, sou PCD, e na época foi uma coisa muito doida. Não conseguia ficar sentada por cinco minutos. Não conseguia ficar de pé. Compus muito desse disco deitada, com teclado adaptado, a Vênus, minha amiga, ao meu lado com o piano. Ele se chama “Chão” porque foi desenhado com pessoas que estão muito próximas. Pessoas que são o meu chão, minha estrutura. E que, nos últimos anos, alavancaram minha carreira musical.

Como começou a sua carreira na produção musical?

No começo eu queria fazer música, ter banda, mas não cantava. Sempre chamava um cantor. Mas era foda, porque eu acho que minha música soava muito estranha para as pessoas. Então comecei a aprender instrumentos variados e gravar as minhas próprias paradas. Só que também comecei a gravar os outros e gostar disso. Acabei deixando minhas coisas de lado, um pouco. Fui descobrindo que gostava de produzir para os outros. Minha vida foi cheia de coisas que eu não esperava, sabe? Hoje tenho feito muito teatro, também…

E produção engatou, de fato, quando eu transicionei. Eu dava aula, era professora em escolas de música e estava estudando na Orquestra Fundação Das Artes, na época. A transição foi ótimo, por um lado, mas difícil, como no momento em que os pais começaram a tirar os alunos das aulas, por exemplo. Eu era a professora que tinha mais alunos e perdi uma fonte de renda. Voltei a fazer música popular e acompanhar alguns artistas, principalmente travestis. De repente, começaram a sugir umas produções e isso e isso foi se alastrando para outros artistas, não só da comunidade trans. Eu já tinha uma bagagem e essa coisa da produção vingou.

Com um novo disco, existe toda essa função de promovê-los nos palcos. Do que você gosta mais, shows ou estúdio?

Eu ainda estou me descobrindo neste lugar do front. Acho que é muito mais fácil e cômodo estar tocando para alguém do que cantando.  É como se eu estivesse começando de novo, com essa parada de fazer música e tocar como consequência. Talvez eu não tenha tanto essa desenvoltura, esse apelo de comunicação com o público, mas aposto também no apelo da própria música. Quem segue meu trabalho sabe que se você esperar X, vai ter Y. E sei que tem gente que gosta disso. Em vez dos Rolling Stones, sou Beatles, David Bowie. Você nunca sabe como vai ser meu próximo trabalho. Gosto de fazer o contrário doque esperam.

Acho que se esperavam um álbum super conceitual. Mas ao mesmo tempo, nos últimos anos, venho produzindo muito brega, funk e rap. Faço porque eu gosto. A música soa popular, mas minhas produção são feitas de maneira a desafiar o ouvido.

Este é mais um disco de vários que estão saindo com o apoio do projeto Natura Musical. Como é bom fazer um disco com dinheiro? Porque, claro, todo mundo começa tendo de lidar com vários perrengues financeiros.

Não é o primeiro patrocínio que eu pego. Já tenho de outros projetos menores, que foram crescendo. Meu primeiro EP foi construído em torno de um apoio da Becks. Um valor muito menor, claro. Também fiz curadoria para alguns editais e alguns festivais e isso me trouxe bagagem para trabalhar com isso. Com a Natura foi o ápice. Nunca tinha feito um disco com tantos recursos. Tive a abertura para colocar uma orquestra como a Nomade, por exemplo. São amigos, mas você tem a condição de pagá-los, sabe? Pude trazer o Badsista para mixar meus vocais, o Zopelar para produzir algumas tracks. Mas todos os meus trabalhos anteriores ajudaram nessa coisa.

E eu já estou com o próximo trabalho em andamento, que também envolve captação de cursos: a direção e composição de um musical! Tudo é uma escada, entende? Vai da confiança na execução, de poder trabalhar um projeto novo sem desistir no meio do caminho. Uma das boas coisas em estar com 40 anos de idade. Você não tem mais pressa para as coisas.

Você trabalha mais para arte do que para a música…

Isso daí, para mim, vem de referências como Quincy Jones, Trent Reznor, Carl Willians, Mahmundi… porque também teve essa coisa: quando eu transicionei, uma das grandes vitórias da minha vida foi dizer “quer saber, eu estou fodida e vou dizer sim para tudo”. Hoje não posso mais fazer isso, não tenho mais tempo. Mas naquele momento eu estav precisano explorar. Caí no teatro, nas trilhas de cinema, produzindo piseiro, coisa que nunca imaginei… trazendo tudo isso para o meu universo.

Malka

foto: divulgação

Chão foi feito na dor, na resistência literal. Qual a sensação de vê-lo nas ruas? Missão cumprida ou o começo de tudo?

É o começo. O primeiro disco que lancei com meu nome. Acho que a ponta de um iceberg. Já vou gravar o segundo agora. No final do ano, estava sem fazer nada, saíram 8 músicas de um projeto paralelo de rock comigo cantanto também. Já até gravei. Quero terminar mas três e lançar esse álbum no segundo semestre. Está nascendo muita coisa vinda do cantar, sabe? E assim vou abrindo novas parcerias.

Daqui para frente vaia ser assim. Eu tinha algum receio também por produzir tantos bons artistas. Você faz The Town com Marina Lima, rearranja as músicas, grava com Luísa Nassin, Potiguara, Matheus Aleluia… é foda tu pegar o micorfone e cantar, a régua fica muito alta, né? Isso acabou virando um monstro, com o tempo.

Mas agora desencanei. Acho que no começo de um trabalho, fiz um disco jovem, enquanto ainda sou relativamente jovem. Tenho outras músicas, outras ideias mais maduras pela frente. E eu queria fazer um disco de funk, com umas putarias, porque o funk tem um lugar muito louco na minha vida. Foi uma libertação do meu corpo trans.

O funk tem isso. Nós vivemos em um elitismo cultural. Se você pegar Caetano Veloso, Chico Buarque, todos fizeram música sobre trepar com novinha. E todo mundo acha chique. O funk faz a mesma coisa, mas na linguagem deles. Estão falando sobre transar. E vamos combinar que 90% da música é sobre estar com alguém. Bach fazia música para a igreja. Mas se você for lá e estudar o cara, vai ver que na verdade ele escreveu para um amor, e disfarçou como música sacra.

Temos de parar de ser entojados. O funk é feito para um local X, diferente da linguagem da MPB, por exemplo. Temos de parar de colocar tudo num lugar sagrado. Cada música, cada lugar, cada festa tem seu local e seu público. E o funk tem esse lugar de libertação.

Porque muitas vezes eu canto para o personagem que eu quero ser, e não exatamente quem sou. Mas, ao cantar, vou destravando coisas que colocaram na minha cabeça e no meu corpo. Vou me libertando das amarras e vivendo essa personagem aos poucos. Hoje, não sou nem mais quem eu era e nem a personagem que estou cantando. Estou no meio disso, e canto para poder me encontrar mais.

 

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.