
Burning Man: o festival que queimou a própria utopia
Playground de bilionários, o evento mais “anticonsumismo” dos EUA fatura milhões e é acusado de hipocrisia
O Burning Man está em franca decadência. E parece até mesmo que o planeta anda de saco cheio da playboyzada que tira, anualmente, uma semana sabática para viver longe do capitalismo, em uma cidade temporária onde não há dinheiro, apenas intervenções artísticas.

Iniciada no último domingo, 24, a edição de 2025 foi saudada pelo São Pedro deles com tempestade de areia e chuva. Há dois anos, o mau tempo ilhou os frequentadores ao final do rolê, em um área desértica de Nevada, transformando as estradas em um lamaçal que atolou tudo mundo. O superstar Diplo e o comediante Chris Rock só escaparam porque conseguiram carona na 4×4 de um fã. Uau, que aventura! Um rico salvando celebridades enquanto o resto da comunidade seguia atolada. Este é o festival que se vende como contracultura.
“Nos últimos anos, o festival tem atraído algumas das piores pessoas da face da terra”, contou a jornalista Arwa Mahdawi em uma resenha para o jornal The Guardian. Herdeiros milionários, cabeças de big techs e demais privilegiados são, atualmente, seu público. Apesar de não se gastar dinheiro dentro do evento, custa caro chegar naquele fim de mundo. Elon Musk, Mark Zuckerberg, Paris Hilton, Katy Perry, Will Smith e outras incontáveis celebs já foram brincar no parque temático hippie. Sergey Brin e Larry Page, fundadores do Google, são frequentadores assíduos. Se duvida de Mahdawi, faça um busca do rolê no Instagram. Você será inundado de perfis de influenciadores mostrando os “looks mais bafônicos”.
Até 2018, “empreendedores” do Burning Man ofereciam acampamentos VIP, com chefs de cozinha exclusivos, segurança e staff para servir neo-hippies que pagavam entre 25 mil e 100 mil dólares pela “experiência”. As áreas, chamadas de Turnkey Camps, foram banidas a partir de 2019 pelos organizadores, que, segundo o Great Basin Sun, recebem cem mil dólares por ano em salários e consomem 25% do orçamento total do “festival anticonsumista”. Sei.

Paris Hilton no Burning Man. Foto: Peter Ruprecht/Reprodução/X
Na comunicação oficial, tudo é muito bonitinho. Nada de consumismo. A gente passa uma semana em uma comunidade utópica, queima o grande homem de madeira e sai de lá sem deixar rastro. Na prática, tudo é muito diferente. Os ingressos chegam a custar 15 mil reais. Embalagens plásticas não recicláveis são usadas às toneladas, inclusive pela organização. E o aeroporto mais próximo, o de Reno-Tahoe, fica engarrafado por causa de… jatinhos privados. Todo mundo gasta e consome os tubos para fazer cosplay de mendigo durante uma semana, a ponto de incitar, nos últimos anos, protestos de ativistas ecológicos em Nevada às vésperas do evento, denunciando a hipocrisia.
Os estadunidenses, é bom lembrar, são propensos a propor alternativas de vida que muitas vezes dão em água. Beatniks, hippies, Hell’s Angels… Começa em Timothy Leary (cujas cinzas foram espalhadas no Burning Man, por Susan Sarandon) e termina em Charles Manson. E o BN segue a sina. Durante a pandemia da covid-19, fãs do rolê, tristinhos com seu cancelamento, organizaram um encontro paralelo em San Francisco, furando o lockdown e ajudando a espalhar a praga que matou milhões no mundo inteiro. O que a organização fez? Transmitiu o rolê em seus canais, avalizando a loucura.
O público do Burning Man explodiu nos últimos anos, atraindo aproximadamente 78 mil pessoas em 2019 e 75 mil em 2022, depois de dois anos parado por causa da pandemia (vale destacar que em 2019, houve mudança na metodologia de contagem, que passou a também incluir staff e voluntários, em vez de apenas o número de pagantes). Com o aumento dos ingressos vendidos, explodiram também os últimos resquícios das cores originais, imaginadas pelo idealizador Larry Harvey e seus 20 amigos em 1986, quando queimaram a escultura humanoide de madeira (o ápice do evento) pela última vez.

Participação oficial do Burning Man por ano. Fonte: Burning Man Project e Bureau of Land Management. Visualização elaborada com auxílio do ChatGPT
Até 1995, o BM manteve o pé em suas raízes. Criar uma espécie de Mad Max da arte para o meio do deserto, desencorajando o consumo e promovendo uma vivência em uma comunidade utópica, completamente oposta ao que a sociedade estadunidense propunha, construindo uma cidade justamente com seus restos, sobras e lixo. Resíduos que, na maior economia capitalista do mundo, são abundantes. Em 1997, reuniu dez mil pessoas, trazendo consigo o hype. A partir dali, não parou mais de crescer. Em 2023, o faturamento anual do Burning Man foi de 66,5 milhões de dólares, segundo dados do Nonprofit Explorer (ProPublica).
Para quem passeia à noite pela Praça da Sé, em São Paulo, pelas periferias indianas, africanas e até mesmo as estadunidenses, é muito comum ver gente reaproveitando lixo e vivendo sem dinheiro. No caso deles, não é por uma semana e muito menos por opção. E aqui, como aconteceu com o Galdino Jesus dos Santos no dia 20 de abril de 1997, em Brasília, os homens incendiados não são de madeira.