TEXTO AMANDA FOSCHINI
FOTOS CAMILLE BLAKE
Qualquer análise musical do Berlin Atonal feita por mim esbarraria na presunção e tropeçaria no achismo puro e duro. Por isso, transformei meu review em relato pessoal e resolvi contar como uma amante da house music se virou na seriedade da música eletrônica experimental. O batismo da festeira feliz no berço da escuridão musical.
Embarquei para Berlim há pouco mais de uma semana para viver a experiência de um festival completamente atípico, que me chutaria na bunda para fora da minha zona de conforto. O Berlin Atonal te transporta para além de música e revira todas as suas maneiras de se relacionar com os ruídos que te rodeiam. Te faz viver o som de uma maneira nova – e nem sempre fácil.
Fiz o meu dever de casa, pesquisei artistas, influências e edições passadas. Tentei molhar os pézinhos no complicado e extenso mundo da música eletrônica experimental para talvez chegar ao festival podendo ter ao menos uma noção básica do que iria acontecer por lá.
Não funcionou. Nada.
Quando enfiei o nariz na escuridão do Kraftwerk Berlin, deixei para trás não só a claridade e o “verão” berlinense, mas também abandonei minha extroversão, minhas referências e tudo aquilo que até então eu entendia por música eletrônica. Dei adeus ao baile, às cadências melosas e sorrisos gratuitos, e fiz meus ouvidos esquecerem a facilidade das melodias já conhecidas.
Naquela usina escura, de vãos gigantes, colunas imponentes e de um brutalismo cortante, a música se transforma em culto, transe, floresta obscura e prece introspectiva. Batidas ecoam e reverberam à sua maneira, esbarrando nos limites dessa estrutura tão singular, para criar novas sensações e permitir que o desconhecido e estranho se manifestem livremente.
A reconstrução da instalação sonora OKTOPHONIE, que utilizava oito canais para criar um “cubo de som” no palco principal, esfumou os limites do ambiente no primeiro dia com apresentações que arrepiaram o couro cabeludo. O produtor japonês Ena e o engenheiro Rashad Becker quebraram a dureza do espaço com um som orgânico de nuances discretas que só poderiam ser notadas em uma estrutura que engrandece detalhes e sutilezas. Na sequência, PYUR (alter ego de Sophie Schnell) também utilizou a estrutura do OKTOPHONIE para sua reza musical, certeiramente batizada de Oratorio for the Underground.
Em outros momentos, sutilezas e detalhes baixaram do palco para abrir espaço para sentimentos pouco comuns e até desconfortáveis, como na apresentação do duo Demdike Stare com o filmmaker Michael England. O som dark ambient da dupla foi ganhando tons mais obscuros à medida em que os visuais de Michael England evoluíam de abstrações en neon até chegar em mulheres contorcidas, olhares assustadores e personagens bizarros. Techno estranho com cara esquisita que gera medo amarrado em incômodo.
A história da música eletrônica experimental também foi devidamente homenageada. A BBC Radiophonic Workshop quebrou a sisudez coletiva com um show simpático e cheio de referências old school, como nos temas originais de Dr.Who e O Guia Do Mochileiro Das Galáxias. Moritz von Oswald, um dos pilares do techno de Berlim, abriu o after da primeira noite no Tresor como manda a cartilha: com uma lenha seríssima, dura, mas cheia de groove. Outros raros momentos de suingue foram um necessário contraponto à sobriedade geral do festival: Pépé Bradock fez o inferninho do after no OHM ficar ainda mais apertado com um house bem trippy e DJ Deep terminou de derreter tudo.
Regis, outra instituição do techno inglês, se apresentou com Main e também trouxe batidas pesadas, mas melódicas ao palco principal na reta final da sexta. A música também se fez mais maleável e divertida na Schaltzentrale, a antiga sala de controle da usina, que nesta edição se transformou em um playground de sintetizadores. A sala, ainda muito bem conservada e coberta de painéis e botões que controlavam o Kraftwerk Berlin, ganhou a companhia de sintetizadores modulares de todos os tipos, que a cada noite eram comandados por um grupo de artistas diferentes. A experiência ali era diferente de todo o resto: luzes, almofadas e plantas amaciavam a o som das máquinas.
Fazer o Berlin Atonal do começo ao fim pode ser exaustivo para não iniciados. A cada dia a escuridão parece ficar mais intensa, o som mais sombrio, as apresentações mais tensas e isso faz parte da mecânica do festival. Por isso, os respiros para visitar as instalações funcionam como um golpe de frescor. A instalação Phyllotaxis, no porão da usina, era uma viagem sinestésica entre som e luzes que transformava o espaço em um vortex de cor que batia mais forte que LSD. Two Skies e Earthworks trouxeram mar e terra para dentro do mundo estéril da antiga usina. Um respiro de cor no escuro, os visuais policromáticos do português Pedro Maia ganharam o público em suas duas apresentações, uma com LLC e outra com Shackleton e Anika, em um dos destaques do festival.
Participar do Berlin Atonal muda não só o entendimento que você tem da música experimental, mas chacoalha também sua relação com outros estilos musicais. E faz repensar a música como conector social e tradutor de ideias. Leva o público a questionamentos que não caberiam no contexto musical de quase nenhum outro festival. O balanço da experiência no Berlin Atonal é bem subjetivo. Gostar ou não gostar talvez seja o segundo plano de um festival que não tem a pretensão de ser “gostável”, mas sim de encontrar novas formas de expressão musical.
Que tal tentar você mesmo? Se joga neste playlist!
BERLIN ATONAL 2017