Conversamos com os integrantes da banda R. Mutt, ícone do post punk e do movimento rock underground de Belo Horizonte nos anos 80. O grupo lança disco que estava encaixotado a décadas, conta sobre a história da cena underground mineira e as aventuras como programa de rádio e selo em Londres.
Inventar o futuro revisitando o passado: a atemporalidade da R. Mutt
Falar sobre música (e sobre o rock underground) é falar sobre tempo, esse metrônomo-rei que conduz a vida e coroa as obras artísticas. Em tempos nos quais presente e futuro nos aterrorizam, por vezes a saída está em abrir as caixas do passado, nele encontrando um porto para ancorar as incertezas.
Foi dessas caixas que saiu uma das melhores surpresas musicais de 2020: o primeiro álbum da R. Mutt, banda de pós-punk que foi crucial para o movimento independente de uma Belo Horizonte que inspirava música e expirava uma geração de artistas experimentais da década de 80. “A cena era incrível, muito inventiva para a época. Os primeiros grupos com quem toquei [R. Mutt, Ida e os Voltas e Divergência Socialista] circulavam na cena do pós punk da cidade, de onde todo mundo saiu”, conta Bruno Verner, vocalista, multi-instrumentista e fundador da banda. “Todo mundo tocava em várias bandas e dialogava com diversos tipos de arte. A gente estava aprendendo, experimentando. Era uma promiscuidade artística”
O espírito colaborativo foi essencial para o desenvolvimento de tantos projetos artísticos. Entre cineclubes, sebos, zines e festivais, o underground de Belo Horizonte floresceu graças a uma característica que faltava no eixo Rio-São Paulo: o tamanho da cidade. “A cidade era pequena, então todo mundo se conhecia, participava e emprestava instrumentos uns para os outros. Nós tirávamos o melhor que podíamos de condições difíceis”, lembra Bruno, enquanto mostra os equipamentos que usava nas gravações. A cidade se mostrou um ecossistema muito fértil e favorável às experimentações, e a cena mineira começou a ganhar os palcos em São Paulo. A R. Mutt tocou no Sesc Pompeia, no Madame Satã e no Retrô; outras bandas como a Divergência Socialista, Sexo Explícito e O Grande Ah! também percorreram esse circuito pela capital paulista.
Com a chegada dos anos 90, muitas bandas se dissolveram e seguiram outros caminhos. Bruno se mudou para Londres com Eli Mejorado, formando o duo Tetine. Lá, já no começo dos anos 2000, eles estrearam um programa de rádio chamado Slum Dunk, que ia na contramão do que se esperava ouvir de dois brasileiros. “Queríamos ultrapassar essa ideia de que música no Brasil é só samba e bossa nova. Queríamos ouvir e mostrar coisas diferentes do mundo todo. Na rádio, nós tínhamos acesso livre ao telefone, então fizemos contato com meio mundo.”, conta Eli. O programa transbordou a rádio e em 2005 virou o selo Slum Dunk, que estreou com uma coletânea Slum Dunk Presents Funk Carioca e seguiu com outras obscuridades e sabores da música brasileira, como a coletânea de pós-punk The Sexual Life of The Savages (lançado em parceria com o selo Soul Jazz em 2005) e um disco das Mercenárias, lançado apenas na Inglaterra.
A redescoberta da R. Mutt
Em meio a tantas descobertas sonoras com o Slum Dunk, Eli e Bruno se depararam, durante o período de lockdown em Londres, com o que se tornou o processo de redescobrimento da R. Mutt. “Nós já estávamos em um processo de voltar às bandas da época desde 2018, quando lançamos a coletânea COLT 45 Underground Post Punk, Tropical Tapes, Lo-Fi Electronics and Other Sounds from Brazil (1983-1993), resgatando a história do pós-punk nacional”, explica Bruno. As 15 faixas de Konkret Dance, gravadas entre 1986 e 1989, exemplificam muito bem a atmosfera artística do pós-punk belo-horizontino. São camadas de som eletrônico costuradas à organicidade sonora de Bruno Verner (guitarra, voz, teclados, programação, samples), Karla Xavier (voz, teclados e percussão), Bernardo Rennó (bateria, teclados, percussão, programação, samples), Marcos Barreto (baixo) e Frederico Pessoa (baixo nas faixas 2, 14 e 15); Não parece ser um disco escondido em uma caixa desde os anos 90, quando a banda acabou. É um disco urgente, pulsante; de hoje e para hoje. Eli conta que ele já nasceu pronto. Só estava esperando a hora certa para tomar vida. E diante desse chamado, desse pulso e impulso pela vida, ela e Bruno souberam que era a hora de jogá-lo no mundo.
O lançamento
Durante o período de produção do Konkret Dance, Bruno se pôs em contato com os membros da R. Mutt. “Foi muito legal, porque não nos víamos há muito tempo e retomamos o contato, lembramos de histórias e ativamos essa memória coletiva”. Entre rolos de fita e pôsteres de show, eles encontraram a capa – que também nasceu pronta. A arte foi feita por Eli a partir do flyer de um show da banda em 1986, criado pelo baixista Marcos. “Não poderia ter uma imagem mais adequada para esse momento”, diz Eli. No meio desse processo de reconexão com o passado, Karla faleceu, em outubro. O disco já estava se encaminhando para o lançamento e, mais do que nunca, Bruno entendeu que ele era necessário e o momento era esse.
E então Konkret Dance veio, no primeiro sábado do mês, dia 5 de dezembro. É um álbum que fez a ponte entre um passado apagado da história e um futuro possível. “Sinto que havia uma ingenuidade de nossa parte, pois éramos jovens artistas aprendendo a fazer tudo”, conta Eli. “Acho que, acima de tudo, havia uma intuição. Nós sabíamos que estávamos fazendo algo inovador que se tornaria importante, mas não imaginávamos que faria tanto sentido 34 anos depois”, complementa Bruno.
Talvez tenha sido essa mesma intuição que os guiou para revisitar o passado durante o lockdown. Não fosse essa ingenuidade, não existiria tamanha disposição e coragem para escrever a história não contada de uma banda que diz mais sobre 2020 do que 1986.
É preciso muita intuição e ingenuidade para fazer as pazes com o presente e imaginar um futuro. Essa tarefa está longe de ser fácil e não há resposta pronta; ela precisa ser construída. E a R. Mutt pode nos ajudar a trilhar esse caminho.