Aos 37 anos, o Madame Satã inspira documentário e continua contribuindo para o cenário e circuito da cena paulistana. Saiba mais sobre esse espaço lendário.

Tawannee Villarim
Por Tawannee Villarim

A história do porão underground de São Paulo que preservava por um ideal de liberdade que que tinha pouco ou nenhum espaço na maioria dos lugares convencionais. 

Por Tawanne Villarin e Yasmine Evaristo

Com uma diversidade já enraizada, à terra da garoa virou palco para expressões culturais que consolidaram bastante a cidade. Como local de origem de toda uma série de movimento artístico ao longo de sua história, se reverberando nos espaços de entretenimento que surgiram no decorrer dos anos. No dia 21 de outubro de 1983 na esquina das ruas Conselheiro Ramalho e Fortaleza que nascIA o casarão mais underground que São Paulo já teve, o Madame Satã, atualmente chamado apenas de Madame.  

A história da icônica casa foi contada no documentário Uma Nova Nova Onda de Liberdade – A História do Madame Satã, produzido por Wladymir Cruz.   Wladymir falou ao Music Non Stop sua relação com a casa e as inspirações para o filme na entrevista que você lê no final desta matéria.

A casa ficou marcada porque foi um local onde as pessoas se reuniam não só para ouvir música boa, como também para exercitar sua liberdade de ser. Mas vale lembrar que lá no seu início, o clube foi projetado para ser um restaurante cultural. Já pensou? Mas logo em seguida o histórico casarão recebeu seu novo conceito: pista de dança, shows de música e performances artísticas. Este formato durou por toda a década de 1980 e 1990 e serviu de abrigo para alguns dos principais nomes da arte e da cultura brasileira. Plural e pioneiro, o Madame foi o primeiro a abrir as portas e abrigar todas as tribos, todo mundo que era “diferente”. Foi no porão do Madame onde bandas como RPM, Capital Inicial, Azul 29, Akira S. e tantos outros nomes essenciais dos anos 1980 solidificaram suas carreiras se apresentando ao vivo. E foi lá também que DJ’s clássicos como Marquinhos MS e tantos outros contemporâneos apresentaram ao Brasil nomes tão díspares quanto essenciais, novidades que iam de The Smiths passando por Cocteau Twins e Pet Shop Boys.

A contribuição do Madame para o cenário e circuito da época foi o de ser praticamente um mainstream do underground, dando uma visibilidade a mais para os artistas que tocavam lá, e claro, liberdade para suas respectivas expressões artísticas. E isso é relevante pro cenário atual, pois foram casas como o Madame que solidificaram o formato de noite alternativa que temos hoje. “Se temos um monte de casas na Augusta com pista escura e banda autoral no palco foi porque o clube e tantas outras deram a cara a tapa antes e provaram que essa era uma equação possível.”, comenta Wladimyr Cruz, diretor e jornalista do longa-metragem Uma Nova Onda de Liberdade – A História do Madame Satã que conta, com registros e entrevistas com personalidades da época, as histórias e momentos eternizados vividos no casarão da Bela Vista.

No final dos anos 2000, o Madame teve que fechar as portas, devido à decadência do lugar. Alguns anos depois, Gerson Rodrigues e Igor Calmona decidiram reviver a história e conseguiram, após uma série de reformas, reativar o casarão datado de 1936. Após mudanças de administração e algumas trocas de nome, o Madame reabriu oficialmente em  29/02/2012 sob o comando do DJ Ge Rodrigues e Igor Calmona, e segue até hoje sendo a casa do underground paulistano. E para falar com mais propriedade, a jornalista Claudia Assef que sempre busca reconstituir com seus livros e textos a história das noites de São Paulo e do Brasil, comenta sobre o clube:

“Era um lugar incrível, cheio de referências de artes múltiplas, de teatro, de performance. Tinha um forte acento gótico, mas também quando surgiu era o início da música eletrônica. E o grande Marquinhos MS – que não tive oportunidade pois ele faleceu antes mesmo que pudesse conhecê-lo fez ‘miséria’ (no excelente sentido) por lá. Misturava rock inglês, acid-house, dizem que era fantástico. Uma noite no madame satã podia mudar a vida da pessoa. Então, é um clube que realmente é uma lenda.”

Mesmo com a pandemia o Madame não parou, seguiu virtualmente chegando ao número de mais de 250 lives diárias, levando o melhor da música para todos os amigos e frequentadores e mantendo acesa a chama da arte de vanguarda, valorizando o underground – até mesmo sua primeira coletânea oficial em CD foi lançada durante este período pandêmico. Pensando em ir além (sim, mais ainda), o atual proprietário, Gerson Rodrigues, comenta um pouco sobre o clube e os próximos passos do clube: 

“Iremos inaugurar mais um espaço, junto com o palco de shows, abrigando o museu do Madame, com toda história do clube. Uma sala de jogos, um bar especial só para drinks. E assim né… o clube permanece vivo entre seus 37 anos com o melhor do underground, tocando todos os dias, se segurando diante dessa pandemia que estamos passando, continuando o legado da boa música e mantendo o clube com seu público e é um padrão que não existe em qualquer lugar do mundo. O Madame é realmente um clube original que traz o entretenimento pra quem gosta da boa música underground, pra quem gosta dos anos 80. Entrou no Madame é uma volta no tempo! A pessoa que entra aqui, entra em uma cápsula do tempo pra curtir uma música, comer um bom hambúrguer, ver shows variados, do berço do rock nacional, dos anos 80 e muito mais.”

Para marcar este dia 21/10, comemorando mais um primavera do inferninho, o clube promoveu uma live especial com os DJs Gé Rodrigues, Escudeiro, Demo e DJ Magoo, este último, uma das figuras centrais da história do Madame Satã nos anos 1980 e 1990. No fim de semana as comemorações continuam, com atendimento presencial de sexta a domingo, mais lives, e a exibição e liberação do documentário que conta a história da casa, “Uma Nova Onda De Liberdade – A história do Madame Satã”, do diretor Wladimyr Cruz, no sábado, através do YouTube do Madame/Underground Radio. Acompanhe e relembre a história do porão underground paulista que prezava pela liberdade.

Yasmine Evaristo, nossa redatora de cinema, falou com Wladimyr Cruz sobre o documentário

No ano de 2015 o jornalista Wladimyr Cruz realizou um documentário contando a história do clube, durante três décadas, dando voz aos seus frequentadores. A Madame já havia sido documentada em dois curta-metragem e também em um livro, mas o diretor achou que poderia explorar ainda mais sua história. Essa ideia surgiu dentro de um projeto sobre o cenário musical do país, uma série de filmes e documentários sobre o rock brasileiro, principalmente em São Paulo. Assim Uma Nova Onda de Liberdade – A História do Madame Satã resgata e registra a história desse espaço da contracultura paulistana.

Tive o prazer de conversar um pouco com Wladimyr sobre o filme e sua importância para a casa e para a história da música no Brasil.

Yasmine Evaristo: O que te motivou a fazer um documentário sobre a Madame?

Wladimyr Cruz: O registro da história. Num país com tão pouca memória, acho que importante a preservação da história, ainda que pela oralidade. São histórias importantes e que devem ser eternizadas. Porém quase não há registros delas. Mas há também a escolha além do gosto pessoal. Sempre gostei e frequentei a casa. Ela tem sua importância e relevância pra cultura brasileira.

Yasmine: Sabemos o quanto é trabalhoso realizar um filme. Gostaria que você nos contasse sobre as dificuldades enfrentadas ao longo da produção de Uma Nova Onda de Liberdade – A História do Madame Satã.

Wladimyr: Dificuldade temos aos montes, desde a falta de recursos até a falta de material de arquivo disponível. Também dá pra por na conta burocracias mil, distribuição deficitária, uma porção de virgulas. Mas entendo que melhor que reclamar disso é incentivar que esse tipo de registro seja feito. Seja como for, mesmo com tanta coisa indo contra. Pode ser no esquema ‘do it yourself’, do punk, ou pode ser com parcerias, talvez com ou sem edital… não importa. O lance é que essa preservação de memória, essa entrega de conhecimento, seja realizada enquanto ainda há tempo.

Yasmine: E qual foi a reação do público diante do documentário?

Wladimyr: O filme teve uma recepção super positiva em diversos segmentos, por públicos diversos. Isso mostra a necessidade e o desejo por esse tipo de material no audiovisual brasileiro. Ainda que algumas pessoas considerem o assunto algo exclusivo de um nicho ou do público underground sempre terá alguém além desse círculo interessado em conhecer mais sobre o que nos é importante.

Yasmine: Para encerrar, pensando nos objetivos ao fazer o documentário, você percebe que os alcançou?

Wladimyr:  O principal objetivo foi alcançado, o registro para a posteridade. Muita gente que participou do filme em 2015 não está mais entre nós. Ainda assim, ali puderam deixar um pouco de si, e seguem existindo com isso.