A década que nunca acabou: selecionamos artistas poucos conhecidos que comprovam a força dos anos 80 até hoje
Que fascinante o big bang musical dos anos 80. O barateamento de samples, sintetizadores e sequenciadores, junto da inspiração do-it-yourself do punk, fez com que toda uma nova safra de tipos de músicas e produtores musicais criassem o hip hop, a house music e o electro.
É uma década que musicalmente nunca acabou. Até hoje nos encantamos e buscamos bases de sintetizadores vívidas, de lindos timbres que ecoam fundo na emoção; até hoje queremos intensificar os tapas na orelhas que os synths dão na música orgânica, aspecto que transformou a disco e o funk em house, mecanizando as nossas danças e criando contos futurísticos como o do Detroit techno…
Até hoje DJs descoladérrimos garimpam 12″ de artistas negros que iam do soul mela-cueca ao suingue erótico, sempre em ritmos mecânicos. Até hoje descobrimos (e revivemos) banda de synth-pop que lançaram só um K7 em 82 e fizeram sucesso durante 3 meses em alguma cidadela inglesa. Esse fascínio em redescobrir os incríveis sons da década em que ou nascemos ou crescemos, move muito de nossas vivências musicais, especialmente se você é clubber.
A breve lista abaixo tem pitacos de Jade Gola, Claudia Assef e Camilo Rocha, e tenta recapturar para nossos leitores brasileiros alguns artistas daquela época que não os clichês, os tradicionais. Aqui não tem Duran Duran, mas tem a irresistível Gwen Guthrie e Egyptian Lover, produtor que não faz nem um ano lançou um disco chamado 1984, fazendo algo que a gente adora: lembrar como os anos 80 eram foda.
Oppenheimer Analysis
OS “DEVIL’S DANCERS” SÃO AUTORES DE UM DOS HITS MAIS DANÇANTES DO DARK OITENTISTA, QUE TOCA HOJE DA SELVAGEM A SETS DO CARIBOU. A DUPLA SURGIU EM K7 E SURFA NA ONDA DA REDESCOBERTA OITENTISTA.
Esta dupla inglesa é exemplo de como os anos 80 nunca acaba no reprocessamento musical. Eles fizeram fama relativa no electro underground com o cassete New Mexico, em 1982. 33 anos depois, em 2005, num revival coldwave, o selo americano Minimal Wave os relançou, fazendo a faixa The Devil’s Dancer ser um hitaço mais atual do que oitentista.
Martin Lloyd faleceu em 2013, e Andy Oppenheimer segue como único remanescente da dupla, lançado electroclash afiado e atemporal até hoje pelos projetos Touching the Void e Oppenheimer MKII, que acabou de lançar um 7″ na Inglaterra – Another Nightmare.
Se o approach do revival coldwave recente é frio, geométrico, o cassete que revelou o Oppenheimer Analysis ao mundo em 82 é mais carregado de uma esperança futurista, num synth pop mais doce que lembra o começo do Depeche Mode . O melhor? Dá para ouvir o K7 inteirinho no YouTube J
Gwen Guthrie
“PRIMEIRA-DAMA DO PARADISE GARAGE”, GWEN CIRCULOU ENTRE A DANCE, O R&B E TODOS OUTROS SONS BLACK; FOI TRILHA DE NOVELA NO BRASIL, BACKING VOCAL E SEUS HITS SENSUAIS TOCAM ATÉ HOJE.
O R&B e a música black feminina sempre tiveram amarras entre o romance e os ritmos dançantes, de Supremes a Beyoncé. Nos anos 80, uma diva que fez bonito e marcou época com faixas deliciosas foi Gwen Guthrie, que faleceu muito jovem, aos 48 em 1999 devido a um câncer no útero.
Gwen fez nome com baladas, como You Touched My Life, que foi trilha de novela no Brasil em 87. Contemporânea e backing vocal de Madonna em seus primeiros releases, ela desenvolveu um som próprio, cheio de groove e malemolência, desenvolvido com os principais produtores da época: nos estúdios de Sly & Robbie nas Bahamas (criadores dos beats de Grace Jones), e também com Larry Levan, que fez o remix de Padlock ser um grande sucesso em clubes como o Paradise Garage e o público gay da época – Can’t Love Your Tonight, de 88, foi canção de Gwen em homenagem a essa comunidade tão atingida pela AIDS naqueles tempos.
Seu maior hit foi sem dúvida Ain’t Nothin’ Goin’ On But The Rent, de 86, outro forte exemplo do melting pot dos anos 80, em que house, garage, hip hop, electro, funk e disco eram um pouco a mesma coisa: a música foi um proto-house do voguing, estética houseira que explodiu no começo dos anos 90. Certeza que por aqui no Brasil os discos e 12” de Gwen chegavam para os DJs nas caixas de disco de Carlos Machado, histórico “dealer” de bolachões (saiba mais).
O sintetizador e o bass dançando bem afinados junto com as letras yuppie da época, em o que importava era a grana, e não muito o amor – no romance without finance… Muitas faixas de Gwen são mixadas hoje, como Seventh Heaven e Hopscoth. Tim Sweeney e seus convidados gostam de tocar sempre que podem no Beats in Space.
Kas Product
NEW WAVE ELETROCUTADA, UMA DUPLA CHEIA DE ATITUDE E UM DOS DISCOS MAIS IMPORTANTES DA MÚSICA SYNTH FRANCESA DOS ANOS 80: O KAS PRODUCT SÃO PRECURSORES DE MISS KITTIN E ESTÃO AÍ ATÉ HOJE.
A música eletrônica oitentista é um produto ocidental, nascida em países como EUA, Alemanha, Reino Unido e França, adornada por instrumentos criados num Japão capitalista. A new wave é muito lembrada por seus artistas e nichos ingleses e alemães, mas os franceses estavam lá, agitando o tempo todo.
O Kas Product é uma das bandas mais notáveis da new wave e seus desdobramentos em electro, coldwave e industrial. Formação: Mona Soyoc, sempre histérica e elétrica no vocal e nos pianos, e Daniel “Spatsz” Favre nas bases eletrônicas, músico que já trabalhou em hospital psiquiátrico e diz muito sobre a toxicidade do som dessa dupla.
O BPM é alto, na faixa dos 160, a influência do sucesso à época de Siouxsie & The Banshees é inegável ,e fãs de artistas mais atuais como Miss Kittin & The Hacker e Tiga vão gostar muito. De 1982, o LP Try Out é o pipoco mais famoso dessa dupla no tiroteio de bandas e estéticas da música synth do começo dos anos 80. Além das tracks mais punkzonas e aceleradas, eles tinham assim uma propensão ao “bop” – o pop mais juvenil da época (pense em Cindy Lauper, ouça Peep Freak), e há vídeos do Kas Product em ação em 2013!
Malaria!
A NEUE WELLE ALEMÃ ERA FEMININA, TEATRAL, RAIVOSA DE SINTETIZADORES RÁPIDOS E GÉLIDOS, SEM CONCESSÕES AO POP. E O CURIOSO É QUE FORAM RESGATADOS PELO CHICLETE COLORIDO DO ELECTROCLASH
Falemos dos alemães agora. No Brasil, o som new wave/dark germânico ficou mais centrado nas atenções ao X-Mal Deutschland, mas uma banda contemporânea, só de garotas, fez fama, influência no synth-pop e foi repescado como ícones underground no electroclash, 20 anos depois.
Achtung, achtung!
O Malaria! Surgiu em 81 como um furacão, single da semana na NME com a Inglaterra de olho na neue welle (new wave) alemã. A vocalista vinha de um grupo punk de sucesso, Mania D, e tinha filiações com outros grupos conhecidos como DAF e Liaisons Dangereuses. A famosa Siouxsie tinha um jeito felino, mas Betinna Köster exibia uma raiva mais hipnótica, mais um canto da sereia elétrico e teatral do que uma explosão.
O Malaria! conheceu algum sucesso nos EUA, onde a banda abriu shows de Nina Hagen. Elas foram redescobertas no electroclash do começo dos anos 2000 como epíteto do som dark e eletrônico da década que voltava à moda. Kaltes Klares Wasser, de 81, foi regravada com acabamento juvenil e inofensivo pelas Chicks on Speed, bem o contrário da original trevosa. O que não impediu da faixa estar presente em diversas coletâneas de eletrão nervoso e techno.
Egyptian Lover
NA PRIMEIRA METADE DOS ANOS 80, HOUSE E HIP HOP ERAM QUASE A MESMA COISA – O ELECTRO, MUITO BEM SINTETIZADO POR ESSE DJ E PRODUTOR DE LOS ANGELES QUE DESCE O DEDO NA 808 ATÉ HOJE.
Os diletantes musicais atentos às formas musicais podem identificar a Roland TR-808 como um dos grandes synths a criarem o som polido e bem marcante dos 80s, tanto no pop, quanto na dance music. Greg Broussard, o Egyptian Lover, de L.A. para o mundo, era tido como um dos reis da TR-808.
O curioso do Egyptian Lover é que seu electro remete como paixão e posicionamento político o som daquela época, mesmo ele nunca tendo parado de lançar EPs e discos, ao longo dos anos 90 e do século XXI. No fim de 2015 ele lançou 1984, álbum de título bem explicativo e carregado de robôs dançantes – freaky deaky machines…
Sua música orna com hip hop, é house music e dá aquela elasticada necessária para quebrar a linearidade do set. E seu som ganhou mais personalidade quando começou a cantar, a ser MC – “para que as pessoas soubessem o nome das faixas”, disse ele ao The Guardian.
Ouça a faixa abaixo, sinta-se numa festa nos subúrbios de Chicago em 1984, mas não se engane: a track é de 2005.
Propaganda
A BANDA MAIS FAMOSA DO SYNTH-POP ALEMÃO TOCA ATÉ HOJE NA SUA RÁDIO SOFT PREDILETA, NÃO CONSEGUIU SUPERAR O SUCESSO DO HIT DUEL E É UM BONITO EXEMPLO DOS EXAGEROS DAQUELA DÉCADA
É curioso que a Alemanha, terra do Kraftwerk, não teve artistas tão seminais no synth-pop como o Reino Unido. Talvez pelo fato de os alemães celebrarem um germanismo em sua música synth oitentista, que fizeram de seus artistas nomes célebres “relegados” ao underground, cantando em alemão. Neue welle, ao invés de new wave.
Excessão foi o Propaganda, que de Düsseldorf (terra dos Krafts) para o mundo, cantando em inglês, emplacou um dos maiores one-hit-wonders da época, Duel. Produzida e lançada por Trevor Hornet, da ZZT, famoso por seu perfeccionismo, a música é um bom exemplo do primoroso acabamento de timbres vívidos e agudos do synth-pop. O clipe é um fantástico show estético oitentista: referências noir, ombreiras e geometria a dar com rodo, nenhuma economia em maquiagem e cabelos, alfaiataria… Chega a doer os olhos de tão incrível.
Liderada por Ralf Dörper, oriundo da cena industrial alemã, o Propaganda escalou a jovem cantora Claudia Brücken e surfou no sucesso do synth-pop que rendia fortunas em libras inglesas. Eclipsados pelo sucesso do “rival” Frankie Goes to Hollywood no selo, tretas com o produtor Trevor Hornet e a dificuldade de superar o hit Duel em seus álbuns seguintes, o Propaganda se dissolveu no começo dos anos 90.
Mas é um bom exemplo da obstinada busca dos oitentistas pelo milionário sucesso fonográfico europeu e, quem sabe norte-americano e global (Depeche Mode foi o que mais teve êxito), sempre carregado de exageros estéticos e timbres afiadíssimos. Curioso observar isso e comparar como synth-pop, hoje, é algo mais de nicho alternativo ou clubber, e de banda que às vezes “deixa um pouco de lado as guitarras”.
Colourbox
SAMPLE-MANIA, NARRATIVAS CINEMATOGRÁFICAS, MÚLTIPLAS CAMADAS DE SONS E ESTILOS E ATÉ RELEITURAS PARA A COPA DO MUNDO ESTAVAM NA BANDA DOS IRMÃOS YOUNG
“Algumas pessoas escutam palavras, outras escutam música”, disse Martin Young, do Colourbox, em uma entrevista de 1985. Faz sentido descrever a música do Colourbox como uma experiência de SONS: esculturas cuidadosamente editadas em estúdio, com efeitos dub, timbres gordos e samples.
Ah sim, e samples! O Colourbox foi pioneiro no uso desse equipamento e já em 83 seus discos traziam trechos extraídos de locuções radiofônicas, diálogos de filmes e seus próprios vocais em afinações diversas. Mas esta era uma camada de um som rico em referências: a influência soul e reggae também se fazia sentir, ajudada pelos vocais sentidos de Lorita Grahame.
Mundo injusto: quase NINGUÉM lembra do Colourbox em 2016 e os irmãos Young, fundadores do grupo, só conheceram a fama com o M.A.R.R.S., aquele do “Pump Up The Volume”, que ajudaram a criar com alguns DJs. Permita-se: comece com “Shotgun”, passe por “Baby I Love You So”, caia em “Tarantula” e depois engate a terceira em “You Keep Me Hangin’ On”, cover do clássico Motown das Supremes. Relaxe com “The Moon Is Blue”. Depois ouça o tema “alternativo” que fizeram para a Copa do Mundo de 86.
John Foxx
COM A BANDA ULTRAVOX, FOXX AJUDOU A CRIAR A ESTÉTICA MUSICAL DOS ANOS 80, MAS SUA CARREIRA SOLO É PONTUADA DE DIVERSOS TALENTOS, NAS MAIS DIVERSAS ÁREAS, NOS MAIS VARIADOS SONS
Diz-se que John Foxx foi o primeiro artista britânico a fazer um álbum pop todo feito de sintetizadores, antes ou quase ao mesmo tempo que pioneiros como Gary Numan. Vocalista da barroca banda Ultravoxx, que antecipou o novo romantismo e o synth-pop dos anos 80 (Viena é de chorar cristais), John teve uma frutífera, porém discreta carreira ao longo da década que ajudou a criar musicalmente.
Foxx é um bom exemplo do artista multifunções, que faz colagens da sua música com sua parte gráfica e visual (ele é fotógrafo e fez capas de livros por muito tempo). Seu estúdio caseiro é fruto de experimentação, onde artistas como Depeche Mode realizavam canjas, e ele nunca parou de lançar EPs ao longo das décadas, inclusive no afã acid house, subgênero em que ele deixou um pouco de lado o glamour synth oitentista em busca de novas energias – ouça Remember.
No século XXI sua colaboração mais notável foi na música eletrônica propriamente dita, em EPs e tracks com o finlandês Jori Hulkonnen, mago dos synths e do techno de hoje, e que em seus takes mais pop mostra como a herança sofisticada e um pouco etérea de John Foxx nunca deixou de pulverizar os ares da música – Never Been Here Before é o melhor exemplo.