AC/CD, James Murphy e vodca para esterilizar a tesoura: a história de parto que virou lenda urbana na noite de SP completa 14 anos

Claudia Assef
Por Claudia Assef

Uma incrível e emocionante história de parto narrada por Claudia Assef

Vou pedir licença para escrever este texto na primeira pessoa, porque simplesmente não tem outro jeito. Nesta quarta (29), minha filha Luna completa 14 anos. E, como muitos amigos íntimos sabem, a história do parto dela virou uma lenda urbana que chegou a inspirar roteiro de peça de teatro (Minha Vida É um Parto) e intermináveis relatos de bar — dos mais fidedignos aos que adicionavam a ela plot twists david-lynchianos, com direito a esterilização da tesoura para cortar o cordão umbilical com vodca e até relatos “confiáveis” de alguém que viu a cena ser realizada atrás da cabine do DJ James Murphy, num festival de música eletrônica.

As versões passadas adiante em afterhours de São Paulo nos idos de 2009/2010 eram exageradas, mas tinham lá seu fundinho de verdade. Nesse relato que farei aqui, tem sim uma grávida a poucos dias do parto no meio de um show do AC/DC no Estádio do Morumbi; no dia seguinte, dançando por horas a fio ao som de James Murphy e Pat Mahoney num festival de música eletrônica; e, poucas horas depois, dando a luz à sua filha, somente na companhia do pai, no quarto de sua casa, sem nem mesmo um frasco de álcool em gel por perto.

O final é feliz e o relato tem o intuito de alertar grávidas animadas com grande sensibilidade a dores a ficarem bem atentas aos sinais de contração de um parto que pode estar mais próximo do que se imagina.

Esta foi a carta que escrevi à minha filha horas depois do parto, ainda na cama do meu quarto, coberta de sangue.

Filha, você chegou no domingo de um final de semana agitado. Não acho que fomos irresponsáveis por ter te levado ao show do AC/DC, no estádio do Morumbi, na sexta à noite. Trabalhei normalmente naquele dia 27 de novembro, correndo contra o relógio porque tinha que deixar o máximo de tarefas cumpridas no trabalho, já que meu último dia antes de sair de licença maternidade seria segunda-feira.

Quando me despedi, correndo, da redação na tarde de sexta [era editora-chefe do Vírgula], mal sabia que ali ninguém me veria tão cedo. E certamente ninguém mais me veria grávida. O plano era pegar um shutter no prédio Dacon e de lá ir ver o show. O primo do seu pai tinha arrumado uns convites pra gente, no camarote da Volkswagen. Claro que eu não iria encarar uma pista ou arquibancada com você já com nove meses dentro do meu barrigão.

Durante a tarde de sexta, eu comecei a sentir as primeiras contrações. Já fazia um tempinho que você estava virada pra baixo, pronta pra sair. Mas a data prevista do parto era entre os dias 10 e 24 de dezembro.

Durante toda a gravidez, eu e seu pai nos preparamos pra um parto natural, ou seja, a ideia era ir pro Hospital São Luiz para lá dar a luz a você, sem anestesia, talvez até dentro da banheira. Para nos ajudar nessa missão, tínhamos o doutor Jorge Kuhn e a parteira Vilma Nishi — essa depois você com certeza vai querer conhecer melhor.

A parteira Vilma Nishi examinando Luna após seu nascimento. Foto: Acervo pessoal

Mas, de volta àquela sexta-feira, 27 de novembro. Chegamos ao estádio do Morumbi lotado e graças a Deus tinha um camarote bem legal pra gente ficar, com comidinhas e bons lugares pra sentar. O show foi incrível, não sei se você vai gostar de hard rock, mas o AC/CD é uma das bandas que valem a pena escutar. Tocaram vários clássicos, Jail Break, For Those About To Rock (We Salute You), Hell’s Bells, Back In Black (a minha preferida)… Quando falarem do histórico show do AC/DC em São Paulo, você pode dizer “eu estava lá”. E chutando muito!

No sábado, seu pai saiu cedo de casa pra trabalhar. Ele estava na produção do festival de música eletrônica da Smirnoff, que aconteceria naquela noite. Acordei sentindo contrações, mas, como estava muito tranquila, não cheguei a me alarmar. Apenas liguei pro Dr. Jorge e pra Vilma. Os dois me disseram que aquilo era o início das contrações que eu iria sentir, em progressão, até o momento do parto.

Fui almoçar com o seu pai num restaurante de saladas e na volta pra casa comprei um coco, que a Vilma me disse que ajudaria a aliviar as dores das contrações. Chegando no prédio, pedi pro porteiro abrir o coco. Cheguei em casa, comi os pedacinhos de coco, enquanto sentia cada contração e pensava “que legal, isso é sinal de que ela está chegando”.

Naquela tarde, sentei na poltrona do seu quarto e fiz meu último frila antes de você nascer, uma entrevista com o DJ Carl Cox para a revista Mixmag brasileira. Terminei o texto perto das oito da noite e liguei pra Bruna, sua madrinha, pra combinarmos de ir ao festival mais tarde.

Àquela altura, as contrações vinham em intervalos mais curtos. A Bruna chegou pra me pegar, e quando entrei no carro dela, respondi ao trivial tudo bem: “tudo, exceto por uma cólica forte. São as contrações”.
Ela quase enfartou e me mandou ligar pra Vilma, pra saber se era sensato sairmos pra dançar comigo naquele estado. Sabendo que seu pai não estaria em casa, a Vilma me aconselhou a ir à festa e dançar. “Vai te fazer bem relaxar, sua hora está chegando e é bom você estar numa boa”, ela disse algo assim.

E lá fomos nós. Chegando lá, vi seu pai rapidamente. Ele sempre fica pouco disponível quando está numa produção, então arrumei um canto legal e fiquei ali, dançando. As pessoas me encontravam e não acreditavam no tamanho da minha barriga.

Dancei durante quase duas horas o set do James Murphy com o Pat Mahoney, era o que eu mais queria ver. Depois, cansei. Fui pro camarim colocar os pés pra cima. Eu estava começando a ficar com dor de verdade. Resolvi ir embora, eram umas quatro e pouco da manhã, e seu pai me colocou no carro que ia levar o James Murphy e o Pat pro Vegas Club. Viemos o caminho todo falando de filhos, e eles adoraram o seu nome, Luna!

Cheguei em casa e dormi, apesar das dores. Acordei perto das dez da manhã, com o barulho do seu pai na sala. Ele tinha acabado de chegar. Em dias de trabalho assim, ele chega tarde mesmo, mas eu fiquei puta da vida porque eu estava daquele jeito. Quer dizer, acho que na verdade só eu lá no fundo sabia que o dia tinha chegado.

Comecei a perambular pela casa sem rumo. Daí foi que eu entendi o significado do termo pata-choca: fiquei andando de lá pra cá, tentando arrumar alguma coisa pra fazer, sem entender por que eu não conseguia ficar parada. Filha, se você um dia estiver grávida e sentir essa sensação, saiba que seu filho está prestes a nascer!

Enquanto estive pata-chocando pela casa, lavei louça, botei roupas na máquina de lavar, tomei banho… foi aí que me liguei: a gente não tinha feito as malas da maternidade! Tirei seu pai da TV e fomos arrumar a sua e a nossa mala. Separamos CDs também. E deixamos tudo pronto na porta de casa. Seu pai chegou a ligar pro hospital pra avisar o laboratório que colheria suas células-tronco que o parto aconteceria provavelmente naquela tarde ou noite.

Numa das muitas idas ao banheiro, percebi uma placa de sangue na calcinha. Como eu tinha lido bastante, sabia que aquilo era o tampão. Liguei pro Dr. Jorge e pra Vilma. Os dois me disseram pra ficar calma, e a Vilma me avisou que estava vindo pra casa pra me examinar.

Só pra você entender, estamos em 2010 e parto normal virou uma coisa totalmente… anormal. O principal motivo é que todo mundo tem plano de saúde, e os médicos dos convênios lucram muito mais fazendo cesarianas, na maior parte das vezes, desnecessárias. Então, pra fazer um parto normal hoje em dia, você tem que buscar médicos e parteiras “diferentões”, partidários desta “causa”. Espero que, quando você for ter nossos netinhos, esse cenário seja bem diferente.

A Vilma chegou em casa para me examinar por volta do meio-dia. Àquela altura, minha bolsa já tinha estourado, e eu estava começando a me apavorar.

Ela me examinou e disse que, apesar das contrações ritmadas, eu não tinha nada de dilatação. Zero. Eu estava realmente com medo, mas a Vilma me tranquilizou, lembrando que, afinal de contas, pelo jeito, o grande dia estava finalmente ali, e que eu não tinha motivos pra ter medo. E falou ainda que, se eu quisesse ter a minha filhinha do jeito que eu queria, ou seja, de parto natural, eu ia ter que relaxar, pra deixar a dilatação chegar, e você poder passar.

Ela me perguntou se eu queria ir pro hospital naquele minuto. Eu perguntei quanto tempo ela achava que a gente levaria até você nascer. Ela disse que, na média, a dilatação tem um ritmo de um centímetro por hora. E que, pro bebê nascer, é preciso ter dez centímetros de dilatação.

Lembrei da salinha de parto do São Luiz, que tínhamos ido visitar umas semanas antes e me imaginei “pata-chocando” ali até os dez centímetros abrirem. Me deu uma angústia enorme e resolvi que iria esperar a dilatação em casa. Disse pra ela ir pra casa dela, que a gente ligaria pra dizer como estávamos.

Antes de sair, ela me pediu pra eu relaxar, tomar um banho quente, comer alguma coisa e dormir um pouco. E ainda falou: “mas me liga, você não vai querer ter em casa, né?”.

Como eu sou super CDF, fiz tudo o que a Vilma mandou. Tomei um longo banho quente e tentei comer um hambúrguer de soja que seu pai fez. Não deu, quase vomitei. Então liguei pra sua avó Cidinha, falei pra ela que estava com contrações e que era pra eles ficaram espertos, que provavelmente a gente ligaria mais tarde pra avisá-los pra ir pro hospital. Ela queria vir aqui em casa trazer comida. Eu não deixei, não queria ver ninguém.

Depois do banho, meu corpo relaxou e eu fui deitar. Eram 15h. Vinte minutos depois, acordei do soninho com uma contração monstruosa, nada a ver com aquela dorzinha que eu tinha sentido até então. Aquilo, com certeza, era a dor de parto de que eu tanto tinha ouvido falar!

Falei pro seu pai ligar pra Vilma, gritei: “fala pra ela voltar porque agora vaaaaaai!”. Falei isso e fui pro banheiro. Me tranquei ali, só eu e aquela dor perto do insuportável. Comecei a suar muito e a cada contração ficava mais difícil achar uma posição. Fiquei ali a alguns centímetros do vaso, me contorcendo muito a cada onda que vinha. Só pensava: “como eu vou chegar no hospital desse jeito?”. Foi quando me olhei no espelho e não me reconheci. Eu parecia uma maluca com as pupilas dilatas, com gotinhas de suor espalhadas pelo rosto todo. Foi ali que eu soube: não ia dar tempo!

Numa onda de dor que mais parecia um instinto de fazer cocô, me contorci toda e acabei fazendo muita força. Enquanto tudo aquilo acontecia, ouvi um barulho interno que parecia com o som de um osso se quebrando, “craaaa”. Pensei: “meu Deus, alguma coisa quebrou”.

Quando me curvei pra examinar o que tinha acontecido, veio a imagem que eu nunca mais vou esquecer na minha vida: vi o seu cabelinho, preto e lisinho, através da fenda da minha xoxota. Num misto de emoção e desespero, gritei: “Danieeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeel” num volume que faria o vocalista do Sepultura parecer uma menininha.

Seu pai chegou na porta do banheiro pálido. Eu apontei pro meio das minhas pernas e falei: “olha”. Ele, passado, perguntou: “o que é isso?”. Eu não sabia se eu respondia ou se simplesmente ia pra cama te parir.

“É a Luna, liga pra Vilma!”

Depois dessa frase, juro que não lembro direito de ter falado mais nada. Virei o Incrível Hulk, uma cadela, um ser com uma única missão na vida: botar você no mundo. E eu não podia falhar.

Saindo do banheiro, com cuidado pra não abrir muito as pernas, peguei a toalha que tinha usando pra tomar banho e joguei sobre a cama. Enquanto seu pai falava no celular com a Vilma, eu ia fazendo força. Não que eu precisasse de explicação pra saber o que eu tinha que fazer ali, mas ajudou muito ter o seu pai ali comigo, e a Vilma como “teleparteira” pra nos orientar.

Basicamente, eu fui fazendo força. O pouco de razão que sobrou no meu cérebro martelava a mesma frase em loop, “não tô acreditando”, enquanto aquelas contrações me faziam entender a dimensão real da dor de parto.

Alguns poucos minutos se passaram até que você estava com a cabecinha pra fora. Filha, a dor é tremenda. Sua cabecinha saiu, e seu pai se desesperou. Lembro dele falando pra Vilma “mas ela não respira, não se mexe. Minha filha, Vilma”. Graças a Deus que ela estava ali pra nos apoiar e esclarecer, pois na hora ela já respondeu que o bebê quando está só com a cabecinha de fora ainda está conectado com a mãe pelo cordão e, por isso, não respira mesmo.

Nem mesmo este momento dramático me tirou do foco da minha tarefa. Você tinha que nascer e ia nascer, eu sabia. Seu pai falou: “a cabecinha tá aqui, a Vilma mandou fazer toda a força do mundo, tem que sair tudo agora”.

Eu fui buscar no fundo da minha alma, a maior força do mundo. Eu ergueria um prédio se precisasse pra você nascer. Quando senti uma contração forte chegando, fechei os olhos e empurrei com tudo: blumblumblum.

Senti seu corpinho comprido passando inteiro, numa sensação gostosa, diferente da dor que foi a passagem da cabecinha. Você havia nascido, filha! Que guerreira, filha!

Ficamos ali um segundo apreensivos, seu pai tinha recebido você numa toalha de rosto. Aí você fez um barulhinho esquisito, por conta do monte de líquido que tinha no nariz e na boca. Olhei pro seu pai e começamos a chorar muito! Ele me deu você nos braços, eu não conseguia acreditar no que havia acabado de acontecer. E só pensava: bem-vinda, filha!

Luna, hoje aos 14 anos, tem uma bela história de parto para contar pros amigos. Foto: Acervo pessoal.

Corta para 2023. Hoje eu olho pra Luna e a chamo de “meu milagrinho de Deus”. Aos 14 anos, ela é uma menina de olhos grandes e curiosos. Nunca foi a uma maternidade. Meu segundo parto foi muito mais “conservador”.

Tive a Maia em casa. Porém, na primeira contração, já liguei pra mesma parteira, Vilma, vir, e ficamos em trabalho de parto por mais de seis horas. Não foi nada fácil. Maia nasceu no mesmo quarto, só que com a devida assistência e assepsia. Então, amigas grávidas, fiquem atentas porque parto é como filho, nunca um é igual ao outro. Boa hora pra vocês!

Claudia Assef

https://www.musicnonstop.com.br

Autora do único livro escrito no Brasil sobre a história do DJ e da cena eletrônica nacional, a jornalista e DJ Claudia Assef tomou contato com a música de pista ainda criança, por influência dos pais, um casal festeiro que não perdia noitadas nas discotecas que fervilhavam na São Paulo dos anos 70.