
Entre discos e porradas: como nasceu a Galeria do Rock
Antes de virar patrimônio cultural, espaço foi campo de batalha inspirado por um filme trash, e salvo por um síndico lendário
Deliciosamente decadente, diversa em subculturas e altamente turística, a Galeria do Rock quase não foi roqueira. “Loja de disco punk? Aqui não!” Foi o que decidiram os administradores do Centro Comercial Grandes Galerias (seu nome de batismo) para tentar lidar com a rivalidade de garotos que adotavam as tribos urbanas como forma de extravazar seu testosterona adolescente. Punks, latinazis e metaleiros (os headbangers), quando se encontravam, era chance de treta. E a abertura da primeira loja especializada em punk na galeria, a Wop Bop, contemporânea da Baratos Afins — templo sagrado do rock’n’roll fundado por Luiz Calanca —, adicionou endereço para as brigas: a grande galeria em frente ao Largo do Paissandu, no centro de São Paulo.

No final dos anos 70, a informação cultural chegava aos cinemas através da revista e do cinema. A primeira, com compromisso jornalístico, e a segunda, como ficção e espetáculo. Foi justamente a ficção a maior inspiração para os jovens desajustados do subúrbio da cidade. The Warriors (Os Selvagens da Noite), de Walter Hill, lançado em 1979, é classificado como um filme de ação e suspense, mas devido à montagem trash e ao roteiro inpirado nos road movies, poderia bem estar na prateleira de comédias, ao apresentar uma visão caricata e estereotipada das gangues de rua da cidade. Dezenas de grupos fantasiados como uma espécie de Carreta Furacão do mal se degladiavam por territórios em uma Nova Iorque degradada.
Caiu como uma bíblia para os punks de São Paulo. O segredo para sobreviver com moral em um mundo desesperançoso e apocalíptico era juntar os amigos da rua, arrumar uma fantasia e impor respeito na porrada. Mas precisamos de música, e a fonte para comprar os amados discos eram as lojas que estavam se instalando na futura Galeria do Rock. Quando o povo começou a se encontrar ali, devidamente identificados, o pau começou a comer, para desesperos dos alfaiates.
A Grandes Galerias é testemunha, cobaia e vítima das transformações urbanas. Foi inaugurada nos anos 60 como um ponto de ateliês de alfaiataria, coisa fina. Com a invasão das grandes lojas e suas roupas industrializadas, cada vez menos gente queria (ou podia) fazer sua beca sob medida, o que foi deixando o lugar às moscas. Sofreu também com a gradativa degradação do belíssimo centro de São Paulo, e mano, se tem coisa que o rock alternativo e underground gosta é lugar falido com aluguel barato. De fácil acesso e no “centro do mundo”, foi virando ponto de encontro de quem gostava de música estranha. Só que a distorção cognitiva provocada pelos Selvagens da Noite quase botou tudo a perder.

A Galeria do Rock nos anos 1970. Foto: Paulo Igarashi/Reprodução
No começo dos anos 80, estava proibida a abertura de lojas voltadas à contracultura. O povo gente fina não queria mais abrir estabelecimentos no local, e quem queria estava vetado. O resultado foi a falência quase total do espaço. Frequentar a Galeria do Rock (assim foi batizada por quem ia, e não pela administração) era mesmo como entrar em um cenário do The Warriors: escadas e banheiros quebrados, iluminação capenga, lojas e bares lutando pela sobrevivência, ainda turbinadas pela venda de vinil, CDs e camisetas.
Em 1993, Toninho, o novo síndico eleito, foi o responsável por uma virada histórica. Acabou com a proibição maluca, concertou o que conseguiu e transformou o pico em um ponto turístico cultural visitado por gente do mundo inteiro, incluindo celebridades do rock como Bruce Dickinson, Kurt Cobain, Turtston Moore e milhares de outros. Tem banda gringa tocando na cidade? Passa na Galeria à tarde que há altas chances de encontrá-lo passeando por lá ou dando autógrafos em alguma loja. O rolê também ficou mais diverso com a chegada de várias lojas dedicadas à cultura hip-hop no andar térreo. Todo mundo agora andava junto, e o inimigo finalmente foi devidamente identificado: o sistema, e não os outros jovens do bairro ao lado.
Novamente, a Galeria cumpriu sua triste sina. Com a chegada da música digital, as vendas de discos e CDs despencaram, trazendo uma nova crise ao local. Mas seu potencial é tão grande que novamente soube se reinventar. Hoje, se encontra de tudo por lá: rock, rap, cultura geek e o que mais estiver fazendo parte da comunidade alternativa paulistana. Toninho também cuidou de abrir o espaço para alguns eventos, como shows de bandas e DJs, aproveitando esporadicamente o lindo terraço do prédio, que pouca gente conhece e tem acesso.

Foto: Reprodução
Não há rolê mais bacana para celebrar o Dia Mundial do Rock do que dar um pulo na Galeria, que fica lotada com eventos oficiais e paralelos, showcases, bares cheios e muita música. Não há programação divulgada. É chegar e conferir o que está acontecendo. Mas a exemplo do que aconteceu na mesma data nos anos passados, abraçar um local responsável pela formação cultural de tanta gente, rever velhos amigos e conhecer o novo é um baita passeio para o domingo mais roqueiro do ano.