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Irresponsabilidade, falta de noção ou ganância pura? A conta das “festas da Covid” de final de ano chegou aos hospitais.

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Editorial – Recordes de contágio, internações e mortes duas semanas após a farra de final de ano e de um dezembro assombrado por festas clandestinas em todo o Brasil. Em que momento deixamos de ser contra cultura e transmutamos o hedonismo em egoísmo?  Alguém entendeu tudo errado.

 

Não é preciso ser um elefante para se lembrar do momento em que, como fogos de artifício, o saco cheio do isolamento pipocou no horizonte, independente de qual bolha você flutua. Foi este o dia em que nasceu o estranho movimento das festas clandestinas no Brasil.

Conhecidos aqui e ali começaram a sumir, as lives esvaziaram, e os jornais locais começaram a publicar notícias cada vez mais frequentes de festas clandestinas sendo interrompidas pela polícia.

Para aqueles que, como nós, sempre encontraram na vida noturna a resistência, o acolhimento às minorias, a exaltação da liberdade (ou uma fuga aos padrões conservadores tacanhos) e, em cenas mais contestadoras, até mesmo uma afronta ao capitalismo, o termo “clandestino” sempre foi motivo de orgulho.

Clandestino?

Historicamente, a clandestinidade na noite veio antes mesmo do movimento punk.  Era em buracos esquecidos que artistas e produtores poderiam tocar eventos dedicados a um púbico non grato em casas noturnas estabelecidas. Foi a liberdade de comportamento e artística desses eventos que fez surgir inúmeros movimentos culturais que depois foram cooptados pelo resto da cidade.  E em momentos onde nada de novo acontecia, frequentar a “clandestinidade” sempre foi um orgulho, um distintivo a carregar na jaqueta. Para muitos, um modo de vida.
Em 2020, pela primeira vez em algumas gerações, o inimigo de toda uma juventude não era mais a moral e os bons costumes, o preconceito ou a indiferença.
Invisível, muito contagioso e, no caso dos mais jovens, geralmente indolor, a Covid 19 trouxe consigo um sintoma muito pouco abordado pela literatura médica: o inchaço do egoísmo.
Esse sintoma já vinha sido anabolizado há algum tempo pela classe mediana brasileira desde que se apropriou dos protestos de 2016 para se revoltar contra o esmagamento econômico que vinha sofrendo em todo o mundo.

O exemplo vem de cima

Em algum momento, toda uma classe que acreditou que poderia “chegar lá” teve um choque de realidade e percebeu que não… não iria rolar. Veio então a revolta “contra tudo isso o que está aí”, desabou no mar de lama do “vou garantir o meu” e degringolou para o “se eu não vou conseguir ascender, então também não vou deixar que quem está lá embaixo também ascenda”. Afinal, quem vai conseguir pagar uma doméstica desse jeito?
Pessoas muito inteligentes perceberam que poderiam ganhar muito incentivando esse tipo de medo. Com a ajuda do nosso deslumbre pelas redes sociais, o terror foi tocado e das cinzas do circo incendiado surgiu a fênix do fascismo que hoje comanda o país.
Desde o começo da pandemia o comportamento de contenção coletiva determinado pela comunidade científica foi desdenhado pela autoridade federal através de doses jumênticas de ironia rasa de boteco.  Aquele bar de esquina misógino, preconceituoso, ferrado e inexplicavelmente cheio de propriedade da razão.  Do bar para as mesas dos almoços de domingo das famílias.

Por um momento, no entanto, acreditamos que o mundo da música, da cultura, da noite, dos shows… este mundo que cobrimos aqui no Music Non Stop, permaneceria em pé com punho ao alto cerrado e inabalável. Resistência, daria o exemplo.  Quanta inocência.
Os clubes, organizadores de festas urbanas e festivais de música eletrônica Brasil afora resistem como espantalhos em uma nuvem de gafanhotos. Vem paulada de todos os lados. Responsabilidades financeiras apertando (não, os bancos não pararam de cobrar nem facilitaram a vida dos empresários, conforme prometido),  funcionários para cuidar, nenhuma perspectiva de retorno à frente e nenhum auxílio governamental para quem estava proibido de trabalhar.  A lei Aldir Blanc, da qual parte é destinada a auxiliar financeiramente espaços de cultura, chegou no final do ano e com uma documentação difícil de ser juntada por um barzinho, clube ou casa de shows.
Foi nesse vazio, o de opções de entretenimento, que uma nova classe emergiu dos bueiros: a dos organizadores de festas clandestinas. Sabendo que havia cheiro de egoísmo reprimido no ar,  souberam jogar no ventilador a notícia de que suas festas rolariam em sítios com divulgação velada.
Ao contrário do comportamento que sempre foi o grande orgulho dos movimentos contra-culturais, o que se viu a partir do último trimestre de 2020 foi o pior do ser humano; se apropriar da cultura dance. E assim como ensinou a Covid 19, não há discriminação de classe nem na morte, nem na brutalidade intelectual.   Festas para todos os bolsos e gostos pipocaram pelo país, com especial saudação à falta total de escrúpulos nos feriados de fim de ano.
Pool Party clandestina

Pool Party clandestina – foto: reprodução

Empreendedores da morte ganhando muito. Milhares de trabalhadores expostos ao perigo de ter de lidar com 2 mil chapados durante horas para garantir o mínimo a suas famílias (nem que seja pela última vez) e a definitiva mácula da palavra clandestina. Ou a devolução de seu significado à grande maioria das pessoas “de bem”.
A conta, que agora chega na segunda quinzena de janeiro (recorde de índices de contaminação, internação e mortes) vai ser dividida em partes iguais a todos da mesa. Paga-se à vista. A carteira ou a vida.
É óbvio que não só o movimento das festas clandestinas causou o desastre. É a cultura do desdém, da ironia, da idolatria à ignorância, que resultou nessa disfunção sistêmica absurda e gerou, além das raves da Covid, os vídeos de barzinho lotado no Leblon, as praias cheias, os “cidadão não, engenheiro!”, os desembargadores sem máscara e todos os outros exemplos a que nossos estômagos foram expostos.
Mas é sobre a noite que falamos. Clubes, shows, DJs, raves, festivais, nightlife, nightclubbing… E são aos que atacam nosso imenso orgulho clubber que apresentamos, através deste editorial, nossa profunda revolta.
Não são clandestinos. São assassinos.

 

 

 

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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