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A Cidade dos Abismos, filme brasileiro com protagonista trans, é destaque em Lisboa. Conversamos com os diretores

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A Cidade dos Abismos - foto: Cinediário

Filme brasileiro se destacou em festivais como IndieLisboa, 10º Olhar de Cinema e 29º Festival MixBrasil

A partir de uma experiência pessoal, Priscyla Betim desenvolveu o argumento de A Cidade dos Abismos, longa metragem de ambientação atemporal, que assina ao lado de Renato Coelho. O filme acompanha Glória, uma mulher trans, Bia, uma jovem de classe média paulistana e Kakule, um imigrante africano que testemunham um assassinato na noite de Natal. Tivemos a oportunidade de bater um papo com os dois para saber mais sobre a produção.

O caminho dos curtas experimentais para o longa

A carreira de Priscyla e Renato como realizadores de cinema parte da ideia de fazerem filmes com o mínimo de pessoas possíveis. Como a diretora explicou “fazer filmes demanda muitas pessoas envolvidas na equipe e o que queríamos era tentar algo mais simples e espontâneo”. Segundo ela, Renato “já pesquisava a obra do cineasta Jairo Ferreira e seu trabalho com Super 8 (câmera dos anos 1960/70)” e, de maneira semelhante, no mestrado, ela passou a pesquisar a obra de Jonas Mekas.

Screenshot entrevista/arquivo pessoal Yasmine Evaristo

 

Em princípio par decidiu fazer curtas que abraçassem o cinema experimental. Assim eles passaram “uma década desenvolvendo curtas-metragens em formato analógico, filmes de arte e filmes experimentais”. Além disso, contou Priscyla, o processo de criação e execução deles não exigia roteiro, contudo ao se pensar no longa o roteiro se fez necessário. Ela afirmou, “não era inexperiente, mas tinha feito roteiros apenas durante a faculdade, pois o filme documental te proporciona mais liberdades”. 

Renato nos contou que “se acostumou a fazer filmes com poucos colaboradores”. Sobre o financeiro contou que “na maioria das vezes foi sem a captação de verbas por edital, com grana própria e de maneira artesanal”. Por isso ele “achava que jamais faria um longa com uma narrativa tradicional”. Entretanto, o contato prévio de Priscyla com produções neste formato facilitou a transição.

Novo formato, novo desafio

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Para Priscyla, “desenvolver um roteiro e uma narrativa sem abandonar o formato que se tornou característica do que estávamos fazendo há uma década” foi um desafio. Renato completou, “fazer algo com uma pegada experimental e ao mesmo narrativo” assustou, mas ao mesmo tempo motivou a produção.

Os dois também apontaram como desafio trabalhar com uma equipe grande, pois “ainda que as funções estivessem delimitadas, na prática tudo era feito de maneira eventualmente colaborativa. Gravar em película, com vários atores, locações demanda tempo, dinheiro e muito trabalho”. Entretanto, tudo deu certo e Priscyla nos contou que esteve “muito feliz, pois sua equipe foi como um presente”. Renata Jardim, produtora de A Cidade dos Abismos, foi apontada pelos dois como responsável por fazer a ponte entre eles e as pessoas da equipe.

Estética setentista e oitentista: a memória do cinema autoral

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Questionados sobre a semelhança que o filme tem com clássicos nacionais do cinema dos anos 1970 e 1980, o par nos falou sobre suas escolhas estéticas. “No primeiro longa tem muito de se querer colocar tudo o que amamos e nos influencia”, contou Priscyla. Em seguida, ela citou Luiz Rosemberg Filho, diretor ao qual o filme foi dedicado e completou, “há escolhas que foram conscientes e outras que não”. A saber, a autora conta que agiu como diretora, mas também como cinéfila que queria homenagear aqueles que admira.

Existe no filme “uma referência o cinema brasileiro do período dos anos 1970/80”, disseram, mas também à outros multi artistas como o poeta Roberto Piva, o cantor e compositor Arrigo Barnabé e o cineasta Andrea Tonacci, que emprestou à eles uma câmera para rodar duas sequências. “A mesma câmera que o diretor usou em Bang, Bang (1971), dando materialidade a esse sentimento”. ‘

Fortes elementos musicais

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Ao longo do filme somos levados por várias manifestações musicais, sejam por meio de cantos ou de poesias recitados. A protagonista do filme, Glória,  é interpretada por Verónica Valenttino vocalista da banda Veronica Decide Morrer e está em cena ao lado de Arrigo. 

Segundo Renato a proposta foi de “dialogar com diferentes gêneros cinematográficos, de uma maneira mais inventiva, para romper com as expectativas”. Priscyla completou afirmando que tal expectativa, “de um gênero apenas, se dilui em um filme que é meio policial,  meio musical estranho com elementos experimentais.

Com toda certeza ficamos curiosos sobre a participação de Barnabé e os diretores nos contatam que “ele foi inicialmente convidado para o fazer a trilha sonora, ao lado de Vitor Kisil, mas depois acabou aparecendo e pontas. Posteriormente ele interpretou a canção junto de Verónica, usando de seu estilo inconfundível.” Renato nos contou que a “dodecafonia experimental presente na cena foi fantástica de ser presenciada”, além disso “há nele uma forte sensibilidade para ver imagens e escrever.” Pryscila relatou com emoção que “era incrível ver ele compondo na nossa frente, pois falavamos algo completamente abistrato e Arrigo convertia em poesia, letras e música.”

Do mesmo modo as canções interpretados pelos atores representam os imigrantes foram trazidos por eles mesmos, segundo a os realizadores, “o que a gente pedia era que eles cantarem algo que os lembra-sem da sua terra, de sua vida, de alguns momentos tristes ou felizes e eles trouxeram essas sensações e experiências para o filme. 

Diversidade do elenco de ‘A Cidade dos Abismos’

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Muita diversidade no elenco de ‘A Cidade dos Abismos’

Já partindo para o fim da conversa pedimos para que Priscyla e Renato nos falassem sobre a seleção do elenco de A Cidade dos Abismos e mais uma vez percebemos a emoção e relação de coletividade da equipe. O filme fala sobre mulheres trans, imigrantes, pessoas que vivem à margem da sociedade “então nada mais justo do que construir essas personagens a partir das vivências pessoais dessas pessoas”, contou Priscyla. Para a diretora “o espaço de troca e de escutas que se formou valorizou o produto final”, demonstrando o quanto sua obra buscou ser justo e a olhedor às histórias contadas, ainda que ficcionais. 

Outra participação de destaque na produção é a do padre Júlio Lancellotti que tem em sua passagem pela tela uma das falas mais emocionantes.  Curiosamente no roteiro o padre possuía “apenas um sermão minúsculo,  então o procuramos e ao apresentarmos a proposta ele abriu as portas da igreja para gravarmos”. Os dois contaram que se inicialmente preocuparam com a participação de Júlio por ele não ser ator, pois haviam poucos rolos analógicos para gravar. Entretanto o padre sabia dessa limitação e, mesmo sem uma fala definida optou por “falar algo vindo do coração”. Como resultado,  uma das sequências mais belas do filme e lágrimas por parte de quem estava atrás das câmeras. 

Para quem ainda não assistiu A Cidade dos Abismo, o filme será exibido  no festival de Balneário Camboriú, na Mostra Crash e no Festival de Londrina

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