Foi através de DJs como Mau Mau, Alfred, Julião, Andrea Gram e Renato Lopes que o techno ecoou pelas primeiras vezes no país. Conheça um pouco mais sobre esta história, cheia de groove e batidas potentes
Parte Um – de 00DC a 1995DC
Com um belo arsenal de DJs locais, um fluxo intenso de DJs internacionais de qualidade circulando e um circuito de clubes, festivais e festa independentes estabelecido de norte a sul do país, o Brasil hoje apesenta um leque de opções para quem gosta de música eletrônica em suas mais variadas vertentes.
Do minimal techno ao psytrance, não é de hoje que as muitas subdivisões da música de pista foram ganhando corpo e uma audiência cativa nos clubes e festas que acontecem pelo país afora.
Mas já houve um tempo em que praticamente qualquer tipo de música eletrônica era chamado de techno. “Era uma forma genérica de falar. As pessoas usavam o termo pra qualquer estilo de música eletrônica, menos house. Então qualquer faixa que tivesse uns ‘bleeps’ era techno”, lembra o DJ Mau Mau, um dos maiores expoentes do gênero no país.
Mesmo usado de forma imprecisa, o termo começou a ser ouvido no início dos anos 90, saído da boca de alguns poucos iniciados. “Lembro de estar no (clube) Nation, em 88, e, no meio de uma leva de discos que tinha chegado, estava a clássica coletânea ‘Techno: The New Dance Sound of Detroit’. Tirando “Big Fun“, do Inner City, o material era bem alienígena para nossos ouvidos virgens, então techno era esse som bem estranho”, recorda Camilo Rocha, que na época nem pensava em ser DJ, mas já estava metido com a incipiente cena eletrônica paulistana.
“A partir daquela época, sempre ouvi coisas sendo chamadas de techno, boa parte das vezes sons bem pop, como Technotronic e 2Unlimited. Em 1991, tanto Prodigy e Altern 8 quanto o hardcore eram techno para a maioria das pessoas ligadas em dance music”, completa o DJ e jornalista.
“Sem internet e com raras lojas onde era possível comprar discos e revistas importadas, era realmente difícil acompanhar as novidades do mundo da música eletrônica naquela época”, diz o DJ Renato Lopes, outro que foi “professor” de muita gente. Mas eles fuçavam, né? E encontravam discos e revistas, como a inglesa “Melody Maker”, para comprar na Bossa Nova, lendária loja de discos na rua 7 de Abril, centrão de São Paulo, o DJ Mauro Borges era vendedor.
Ao lado de Mau Mau, Lopes foi residente do Sra. Krawtiz, primeiro clube a incluir o techno – principalmente a vertente de Detroit, mais melódica – em seu cardápio. Ali, a dupla experimentava com diversos tipos de som da house ao breakbeat, sempre usando como tempero altas doses de techno, “especialmente o Mau”, diz Renato Lopes.
Ele e Mau Mau, por sua vez, também tiveram um “professor” de techno. Foi Marquinhos MS, lendário DJ da virada dos anos 80 e meados dos 90, em São Paulo, falecido há cerca de dez anos.
“Escutei techno pela primeira vez com o Marquinhos. Acho que foi em 88 ou 89. Ele falou pra mim sobre uma música do LFO (“LFO, LFO”), que estava estourando caixas de som de boates, literalmente, por causa das frequências baixas. Nos clubes que não tinham subgrave, as caixas não aguentavam. Ele falou: ‘isso que é techno! A música tá estourando as caixas!!’. Daí, lá fui eu atrás do tal do techno”, lembra Mau Mau.
A primeira noite exclusivamente de techno em São Paulo teve a dupla Marquinhos MS e Mau Mau na cabine. Foi no Malícia, um clube gay onde MS foi residente e que reuniu, durante anos, um bando de modernos atrás de música boa.
“A gente ficou super empolgado com o techno. O Marquinhos tinha uma noite de quarta-feira no Malícia, que era mais underground, dava pra fazer um som um pouco diferente, não tinha que tocar só hits das bibas. Era uma noite mais moderninha. Foram as primeiras noites de techno, isso foi entre 89 e 90”, lembra Mau.
Enquanto isso, no Rio de Janeiro, o público carioca começava a se familiarizar com o techno através do rádio, com o programa “Novas Tendências”, do visionário José Roberto Mahr. “Comecei a ouvir techno a partir do ‘Novas Tendências’ mesmo. E, depois, indo ao clube Kitschnet, nas noites do programa, e também em sets do Felipe Venâncio”, lembra o DJ Maurício Lopes, um dos ícones do estilo em terras fluminenses.
Em 92, o Sra. Krawitz começava a colecionar adeptos em São Paulo, e seus DJs começavam a influenciar a pista mais diretamente. “O Renato Lopes foi uma referência fundamental nessa época, não só para nós, mas acredito que para outros DJs e artistas que estavam iniciando. Lembro do som que ele tocava no Krawitz… era hipnótico, com groove! Toda essa fase dele nós absorvemos intensamente”, diz Garga, que ao lado do produtor Renato Malin formou o Habitants, primeiro live act de música eletrônica do país.
“Éramos frequentadores do Krawitz. Uma noite, em 93, levamos uma fita cassete com algumas músicas nossas. Chegamos no Lopes para mostrar o nosso som. Ele ouviu e gostou. Logo depois nos convidou para uma apresentação ao vivo no clube. Foi o primeiro live do Habitants”, conta Garga, que deixou a dupla em 95, ano em que foi lançado o disco de estréia do Habitants, pelo selo Cri du Chat. Desde então, ele passou a se apresentar e lançar músicas sob o codinome Pink Freud.
Em 92, mesmo ano da abertura do Krawitz, houve também a primeira rave do país. Foi organizada por Marquinhos MS e, graças a um patrocínio da Generation, marca de jeans que na época vendia que nem água no deserto, ganhou o nome de Generation Rave. “Não tinha muito de rave, foi uma adaptação aos moldes da festa pra nossa realidade. Pra começar a festa nem foi ao ar livre, rolou no Aeroanta (antiga casa de shows/clube em Pinheiros)”, lembra Mau Mau, rindo.
ALFRED E A NAÇÃO HELL’S
O ano era 94, e São Paulo ganhava seu primeiro afterhours semanal. Chegou a se chamar Velvet Underground, mas logo trocou de nome e de direção, mas não de endereço: permaneceu no porão do clube Columbia. Nascia o Hell’s Club.
Com direção artística do promoter – e hoje DJ – Pil Marques, que já tinha experiências de festas de música eletrônica, como a rave Technologica, o Hell’s entrou para a história como a primeira festa fixa de techno do Brasil.
“Foi a partir do Hell’s que a palavra techno começou a ficar mais comum”, diz Renato Lopes.
A orientação rumo ao estilo nasceu de uma viagem de Mau Mau a Londres, onde, na época, vivia o DJ Camilo Rocha. “Depois que eu fui pra Londres e encontrei o Camilo lá, em 94, resolvi focar no techno. Uma noite, fomos ao clube Final Frontier e vimos Hardfloor, Dave Angel e CJ Bolland de uma vez só. Achei aquilo demais e resolvi apostar mais naquele segmento. Enquanto eu estava na Inglaterra, o Pil Marques me ligou falando que o Hell’s ia começar, que eu tinha que voltar logo. Eu estava lá fazia 40 dias e ele marcou a abertura do clube logo na semana em que eu cheguei”, relata Mau Mau.
Isso certamente explica muita coisa. “Depois o Mau Mau me contou que a inspiração para o Hell’s se tornar um projeto focado num gênero só tinha sido aquela noite no Final Frontier – lembremos que essa época era de fragmentação e demarcação de território na cena eletrônica”, comenta Camilo.
O clube era uma novidade só, a começar pelo horário de funcionamento. Abria às 4h30 e ia até as onze da manhã. Foi também um dos primeiros a investir pesado em programação de gringos. Trouxe apresentações que marcaram época, como os sets de Stuart MacMillan, da dupla Slam, e do francês Laurent Garnier.
A DJ Andrea Gram, uma das residentes mensais – o único residente semanal era Mau Mau -, recorda o que saia do sound system do Hell’s.
“O som era bem pesado, mas com variações de estilos: techno tribal, hard house, tech-house, do Dave Angel, Kenny Larkin, hardtechno (de Advent e Surgeon) e minimal, de Plastikman e Jeff Mills. A gente tocava de tudo dentro do estilo techno”, conta a moça, que era uma das únicas DJéias do clã, além de Paula. Andréa também comandava uma festa própria, totalmente dedicada ao techno, chamada Club Alien, nos idos de 95.
Outros importantes residentes do Hell’s foram Julião, ícone do eletrônico underground que mais tarde se encantaria por electrobreaks, e Alfred, DJ e produtor que se tornou peça-chave no desenvolvimento da cena de techno brasileira, morto em 99.
Mau Mau foi seu melhor amigo durante vários anos e lembra do estilo bon vivant do DJ. “Ele chegou a produzir umas coisas bem legais. Teve até um selo de Detroit que queria lançar a música. Só que o loucão do Alfred não mantinha as música arquivadas. Ele fazia no teclado e gravava ali mesmo. Depois não sabia fazer de novo”, conta Mau.
Em 96, Alfred, Mau Mau e Apollo 9 lançaram o primeiro single de techno pelo selo Fieldzz (de Iraí Campos). O projeto se chamava Space Cake, e a música, “Acid Cake”.
Alfred é lembrado como um DJ que ousava muito durante os sets. “Ele gostava muito de techno de Detroit, Carl Craig, Dan Curtin. Teve um set histórico dele no Hell’s, em que ele tocou um trecho de uma música da Elis Regina. Foi incrível”, lembra Renato Lopes.
Na opinião dos assíduos frequentadores do Hell’s, Ana (que aliás foi hostess da festa) e Davi, da dupla Pet Duo, os nomes que mais marcaram época no clube foram Alfred, Julião e Mau Mau. “Eles foram os mais importantes naquela época para a primeira difusão do techno”.
Outro que passou da pista para o palco do Hell’s Club foi Renato Cohen. Autor do maior hit de techno produzido por um brasileiro (“Pontapé”), Cohen fez seu primeiro live PA no afterhours, em 96. “Acho que naquela época ninguém nem reparava em equipamento. Todos os lives tinham formato de show. O DJ parava de tocar, e a banda começava. Quebrava todo o clima de club. Comigo a reação das pessoas era muito boa porque eu tocava como se fosse um DJ, era tudo mixado, eu nem queria que as pessoas percebessem que era live”, diz Cohen, que deve lançar seu primeiro álbum nos próximos meses, dez anos depois de ter estreado como produtor, com o “Out Records”.
Foi ele quem ajudou a organizar o único lançamento do DJ Alfred, um disco póstumo. “Depois de fazer o ‘Out’, eu tinha todo o esquema de fazer discos. Sabia como fazer rótulo, capa etc… Quando o Alfred morreu, decidimos vender todos os discos dele, que nós mesmos compramos, e usamos o dinheiro para fazer um single com duas faixas dele. Foi uma edição numerada que demos de presente para amigos”, conta Cohen. A música se chamava “São Paulo 15 Graus” e era uma tiração de sarro com “Rio 40 Graus”.
Em 1997, outro single nacional chamou a atenção dos DJs e frequentadores do Hell’s. Era um disco de remixes da música “Gera”, do primeiro disco do projeto Benzina, codinome eletrônico do guitarrista Edgard Scandurra, habitué do after. “Eram três remixes da música: um do Mau Mau, outro do Renato Lopes e outro do Suba, além de uma faixa original do CD, chamada ‘Jazzy James’. Era um puta vinil! A versão do Mau bombava no Hell´s”, diz Scandurra, apenas um dos roqueiros que foi mordido para sempre pelo vírus do techno.
Para muita gente, o período áureo do Hell’s, entre 1995 e 1997, marcou uma das melhores fases da música eletrônica no Brasil. “Eu vejo dois grandes picos de desenvolvimento: um entre os anos de 1995 a 1997 que, para mim e acho que para todos que viveram, será difícil de ser superado, e outro entre os anos de 2002 a 2004. Estou esperando o próximo auge brasileiro, porque na Europa eu nunca vi o techno tão grande”, diz Anderson Noise, um dos maiores tops que o Brasil já produziu.
Best of Hell’s Club, por Pet Duo
Hardfloor – “Fish’n’Chips” (considerado por muitos como o hino do Hell’s, quando tocava literalmente vinha abaixo)
Damon Wild & Tim Taylor – “Bang the Acid”
The Advent – “Bad Boy”
Josh Wink – “Meditation Will Manifest”
Daftpunk – “Rollin’ & Scracthin’”
Jeff Mills – “Step to Enchantment”