
KENYA20Hz: da periferia do Rio à abertura para lenda do techno
Celebrando dez anos de carreira, DJ e produtora carioca abre os shows do projeto Tomorrow Comes the Harvest, de Jeff Mills, em SP
São Paulo verá, nesta terça e quarta-feira (14 e 15 de outubro), na Casa Natura Musical, uma saudável e apetitosa resistência à gentrificação da música eletrônica. Nas mesmas noites, se apresentam um mano da periferia de Detroit, hoje um dos grandes deuses do techno, Jeff Mills, e uma mina da periferia do Rio de Janeiro, celebrando exatos dez anos do início de uma carreira que já a levou muito além do que imaginava — KENYA20Hz, convidada pelo próprio Mills para fazer seu show de abertura.

Não é pouca coisa. A brasileira ganhou destaque ao incluir experimentalismo, tecnologia e uma nova visão às informações de suas origens como uma negra que cresceu em Nilópolis, na baixada fluminense, distante do que se conhecia até então como “centro” do cenário eletrônico de sua cidade. Jeff, três décadas antes, fez o mesmo.
“Música é frequência, e frequência é energia. Então, muitas vezes aquilo que você está reproduzindo, amplificando, acaba chegando onde precisa chegar. Mesmo com os obstáculos, eles chegam. Esse convite chegou através de uma mulher, negra, que admira meu trabalho há muito tempo, e ‘conhece alguém que conhece alguém que conhece alguém’. Essa amiga morou um tempo fora e já teve contato com o Jeff Mills, com pessoas do seu grupo. Quando ela soube que essa turnê seria feita aqui no Brasil, ela comunicou ao pessoal: ‘tem uma pessoa lá que tem que abrir o teu rolê’.”
E a lenda de Detroit ouviu o conselho. Kenya, que conversou com o Music Non Stop em meio à confusão de uma mudança de apartamento, conta que recebeu o convite diretamente da equipe do artista estadunidense. Uma proposta mais do que especial, quase mística. O primeiro show, nessa terça, acontece dez anos após a primeira gig de sua vida, em uma festa só de minas no clube Fosfobox, na Zona Sul carioca.

Foto: Divulgação
“Óbvio, já conhecia o trabalho do Jeff Mills. E após receber o convite, fui pesquisando cada vez mais sobre ele, e vi o quanto a narrativa dele se assemelha à minha. Essa visão ancestrofuturista, através desse projeto, o Tomorrow Comes the Harvest… A história não contada, a utopia fantasiada desse lugar de tecnologia. E de como nós, negros, fomos deixados de lado”, continua.
“Nós fomos um povo que possuía muita tecnologia, mas foi destinado a ter de fazer as coisas de uma forma rudimentar, de recomeçar. Seu projeto é um posicionamento de como o negro enxerga a tecnologia. O negro consegue trabalhar com a magia, a mística e o mistério através das máquinas — algo que eu busco entender desde que comecei a tocar. Mesmo ainda sem entender muito bem, esse foi o motor que permeou a minha pesquisa sonora e a minha postura dentro da linguagem do som.”
KENYA20Hz saiu de Nilópolis, passou dois anos em Brasília, conheceu muita coisa da música eletrônica por lá, “do grime ao experimental”, escorregou-se para o Alto Paraíso de Goiás, onde conviveu com a turma das raves, e voltou à sua terra natal cheia de informação musical, mas sem um povo para chamar de seu. Em 2014, foi selecionada para uma residência de um ano na Red Bull Favela Beats, no Rio de Janeiro, onde teve acesso a equipamentos de ponta e três DJs professores de primeira linha: Nino Leal, Sammy Pitbull e Grandmaster Raphael. Em 2015, saiu pronta, tinindo para sua primeira gig na Fosfobox, cheia de confiança para chocar a pista de dança.
“Eu me meti na festa tocando dark dubstep. Não tinha noção nenhuma de pista. Tinha uma curadoria muito experimental e eu estava animada com a ideia de colocar músicas que as outras DJs não tocariam. Naquela primeira vez, eu lembro que esvaziei a pista. Toquei uma música que era experimental demais. Pensei: ‘nunca mais toco na minha vida’.”
Mesmo saindo da pista para refrescar a orelha, o povo não se esqueceu de KENYA20Hz. A mina tinha coragem. E conhecimento. Juntando com um pouco mais de “bondade” com o ouvido do público, criando a experiência necessária para dosar o experimental doidão com o ligeiramente palatável, ela foi se destacando no cenário eletrônico brasileiro, e mundial.
“Em dez anos de carreira, a gente tenta dominar essa arte do controle da mente, de você entender que você está ali performando, está oferecendo um trabalho, que algumas pessoas podem se conectar e outras não. Porém, quanto mais você vai dominando essa técnica, essa arte, mais você consegue entender o que o momento precisa.”

Apenas dois anos após o show de estreia na Fosfobox, a garota de Nilópolis já se apresentava na Argentina. Após a pandemia, foi mostrar seu som na Europa, onde se apresentou em cidades icônicas para a música eletrônica, como Ibiza, Paris e Berlim, incluindo o disputado clube Berghain — uma casa famosa por longas filas de gente esperando no frio para serem admitidas por uma door policy que resolve, olhando para a cara do cliente, se ele deve entrar ou não. Para uma mulher preta, algo que acende a luz amarela:
“Como uma mulher negra que frequenta festa de música eletrônica há muito tempo, é um pouco complicada essa ideia de ter que passar pelo crivo de alguém pra poder entrar num lugar. Então, de certa forma, eu falei: cara, eu não vou passar por isso, não, porque eu sinto que eu já passei muito por isso na minha vida”.
Não pense que o susto da primeira gig mudou a cabeça “estranha” de Kenya. A DJ e produtora tem consciência de que sua verve artística está justamente no choque musical — na coragem de mostrar ao público algo que definitivamente não está no lugar comum (olha o padrão Jeff Mills de discotecagem aí, novamente):
“Eu gosto de tocar coisas que me colocam em um estado quase de absurdo. Não é sobre violência, não é sobre agressividade, mas é sobre algo que eu não espero. É saber o que o público quer ouvir, mas ao mesmo tempo colocar aquilo que ele não espera”.
Mas o que pensavam os europeus que foram a um clube para ver uma mulher carioca tocando? Se assustaram, como na Fosfobox, ou se maravilharam, ao ouvir algo diferente da expectativa que tinham, moldados pela visão midiática do que é o Rio de Janeiro e o que pensa uma mulher brasileira?
“É engraçado você fazer essa pergunta. É uma eterna expectativa que é atendida e é quebrada. O ritmo é esse. E eu acho que quem acompanha o meu som, meio que espera isso. De quem foi de certa forma ali pra me ver, eu ouvi duas opiniões. Uma: ‘cara, o que foi aquilo que você tocou?’. E, ao mesmo tempo, tinha a pessoa que esperava o inesperado”, segue a DJ.
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“Eu toquei tanta coisa… De dubstep até psytrance, high-tech, passando por funk, funk 150 BPM. A minha ideia é ir costurando essas texturas que vão para narrativas completamente diferentes. É um som de floresta, mas, ao mesmo tempo, é um som cósmico, é um som da sujeira da favela, da textura do grave estourado. É uma série de estéticas que vou costurando que, dentro da minha cabeça, faz sentido. E, de certa forma, tento mostrar que existem essas realidades, porque elas não são tão distantes assim como as pessoas imaginam.”
Todo DJ se expressa por sua técnica e por sua seleção musical. Dá um papo, passa uma mensagem. Ou tenta. Finalizo perguntando à KENYA20Hz que mensagem ela não pode deixar de transmitir em seus sets:
“Que eu não vou te tirar de casa para você escutar a mesma coisa que escutaria com qualquer outra pessoa. Simples assim. Vou valorizar o seu tempo”.