‘Literatura Livre’, o projeto que traduz e disponibiliza de graça livros raros e inéditos
Segunda temporada da coleção lançada pela Editora Sesc e o Instituto Mojo já está disponível, gratuitamente
“Domínio público não significa domínio do público.” Assim falou Ricardo Giassetti, cabeça do Instituto Mojo que, em parceria com a Editora Sesc, é responsável por um dos projetos mais bacanas da atualidade voltados para a democratização da leitura, o Literatura Livre.
Após 70 anos da morte de um autor, suas obras entram na classificação de “domínio público”, o que significa que podem ser reproduzidas e republicadas por qualquer editora, sem a necessidade do pagamento de direitos. O mesmo acontece, com diferentes prazos, para todo tipo de criação artística e intelectual. A lógica é simples, e bela: após uma prazo considerado justo para capitalizar com sua criação, toda obra se torna patrimônio da humanidade, a serviço da cultura e de um conhecimento maior.
No entanto, apenas entrar em domínio público não garante seu acesso a todos. De nada adianta estar livre se não for traduzida e editada por alguém, e então disponibilizada, gratuitamente ou não, nas prateleiras. Atualmente, existe um baú gigantesco recheado de obras fantásticas e que ainda não podemos ler. Para virar este jogo, surgiu o Literatura Livre.
Já em sua segunda temporada, o projeto acaba de botar para jogo mais 15 obras, algumas clássicas e muitas desconhecidas e raras, principalmente para nós, viciados em consumir produções de poucos países. Na nova coleção, há livros japoneses, árabes, peruanos, argentinos e muito mais.
Desde 2006, o Instituto Mojo de Comunicação Intercultural embarcou nessa missão. São mais de cem livros traduzidos e dez milhões de downloads. Encontrou pelo caminho outra instituição que partilha dos mesmos princípios, a conceituada editora do Sesc São Paulo. Claro que deu bom, e o resultado você acessa clicando aqui.
Conversamos com Ricardo Giassetti, curador do Literatura Livre e tradutor de algumas das obras, sobre este projeto tão bacana, o processo de escolha e preparação, e por que fomos acostumados a centralizar nossa leitura em tão poucos países e escritores. Vem com a gente!
Jota Wagner: Está é a segunda temporada do Literatura Livre…
Ricardo Giassetti: A primeira foi no comecinho de 2020.
Quais são são as diretrizes da curadoria? O que você busca quando vai fazer a seleção de livros?
Tem vários pilares curatoriais. O primeiro é a diversidade que o Sesc busca. Cultural, etária, de gênero… E também o popular versus o novo, o diferente. Na literatura, como eu aplico isso? Em primeiro lugar, todos os livros que a gente fez são bilíngues. Vão atender não só ao público brasileiro, mas também às comunidades locais, de imigrantes.
Na primeira temporada, fizemos um recorte dos movimentos migratórios que formaram a cultura brasileira. Então você tem ali os japoneses, africanos, alemães, italianos, que formam o caldeirão cultural que temos aqui, principalmente no estado de São Paulo.
Nesta edição demos bastante atenção para a América Latina. Temos cinco ou seis obras em espanhol latino-americano. E temos, também, uma outra calibragem, que é pensar nas obras que são muito populares e as muito desconhecidas. Você verá, por exemplo, 1984, do George Orwell, que todo mundo conhece ou já ouviu falar. Só que estamos entregando isso gratuitamente. Este é o diferencial para os livros mais conhecidos.
Aí, temos as raridades, como o livro que o Mamede Jarouche traduziu, o Livro do Tigre e o Raposo, que nem na Arábia existe direito. Fomos buscar de um estudioso francês que fixou esse texto, ou seja, pegou do manuscrito original e datilografou em árabe. A partir deste manuscrito, ele fez uma tese, e pegamos o original dele para fazer a edição em português. É um livro que atende também os representantes da cultura árabe aqui no Brasil.
Uma outra questão é a etária. Nas duas temporadas, temos algumas coisas adultas e outras mais infantis. Como o Contos da Selva, do Horacio Quiroga, um escritor sensacional argentino-uruguaio. Um livro baseado em Kipling, autor de Mogli: O Menino Lobo.
Essa segunda temporada também teve esse recorte, de obrigatoriamente termos uma colônia forte no Brasil?
Tem livros em japonês, em italiano, espanhol, inglês, alemão e também francês (que fizemos pela primeira vez). A comunidade francesa no Brasil é superdiscreta. Então, nesta temporada, nós olhamos mais para esta coisa do latino-americano e também, em face de tudo o que aconteceu na pandemia, textos um pouco distópicos e um pouco mais fantasiosos. Por exemplo, 1984 é uma distopia. A Bota de Ferro, do Jack London, é uma baita romance revolucionário, faz previsões que foram acontecer muito depois, ou que estão acontecendo agora, como o fato de os chineses estarem tomando conta da economia mundial. O Avatar, francês é uma história de realismo fantástico.
Tem a ver com o filme homônimo?
Não, nada a ver. É uma história em que as pessoas trocam de corpo. É uma narrativa orientalista. O cara é um guru oriental, indiano, que tem uma fórmula específica que permite que as pessoas troquem de corpo. Tem o Contos Malévolos, do Clemente de Palma, peruano, sobre o amor, a loucura e morte. É para ler, sentar e pirar, porque é algo fora do seu cotidiano.
Quais são as dificuldades e os desafios na tradução?
Na Mojo, temos um cuidado muito grande com a tradução. Não é porque está sendo disponibilizado de graça que a edição tem de ser “qualquer coisa”. A Safa Jubran, que traduziu o primeiro livro árabe da temporada, e o Mamede Jarouche, são nada menos do que professores do idioma e chefes de cadeira na USP. O tradutor de alemão, Giovanni Rodrigues, é superconceituado em Nietzsche. A Nani Yoshida, professora máster, também da USP, é especialista mundial de Hōjōki, um obra do século XII que estuda há muito tempo, mas nunca tinha traduzido.
Por que, ao longo do tempo, a literatura foi sendo tão concentrada em poucos países, digamos, clássicos? É questão de mercado ou quantidade de produção?
Cara, é uma opressão cultural que a gente sofre aqui no Brasil. Os Estados Unidos são uma máquina cultural desde o século XIX. Os ingleses, antes até. E tem o lance das línguas que chamamos de românticas, que vêm do latim. Elas têm mais aderência do Brasil, graças ao nosso raciocínio ocidental. Quando você pega a produção literária de outros países, ela é praticamente a mesma (em números). Não são mercados tão ricos, mas a produção existe e a gente não conhece. A literatura árabe é um absurdo de riqueza. O mesmo vale para a turca, japonesa, chinesa, indiana… São muito vastas, mas pouco traduzidas no Brasil por causa dessa aderência cultural e, também, pela facilidade de tradução. Tem muito mais gente que fala espanhol, inglês, francês e alemão do que as que conhecem outras línguas.
O que nós perdemos por estarmos submissos a essa opressão cultural?
A gente fica refém de uma narrativa histórica. Vivemos isso até hoje. Essa tendência de romantizar o ocidente e demonizar o oriente. Por exemplo: os originais de Aristóteles são em grego antigo. Esses manuscritos estavam na Biblioteca de Alexandria e foram contrabandeados para a Pérsia quando ela foi incendiada. Na Pérsia, os caras conseguiram resgatar porque ninguém mais sabia ler aquilo.
Até hoje, você consegue ver a influência cultural árabe na Espanha, por exemplo. Porque foi por ali que entrou a filosofia grega. São Tomás de Aquino e todos esses caras que são emblemáticos na Igreja Católica, da teologia da libertação, consumiam textos em árabe. Temos, portando, uma maquiagem ocidental. O motor a vapor foi inventado no Egito por volta dos anos 1000. Só que a gente acha que isso aconteceu na Revolução Industrial, criado por ocidentais.
Como as pessoas acessam os lançamentos do Literatura Livre?
A coleção é digital, disponibilizada em nosso site. As pessoas podem consumir livremente. Não é preciso se cadastrar ou coisa assim. Os livros estão à disposição em dois formatos: PDF, para abrir em qualquer dispositivo, e em EPUB, para ler no Kindle. A parte visual, importante lembrar, também foi alvo de muito cuidado, tanto na parte diagramação, feita pelo especialista Fernando Ribeiro, quanto na arte do Chris M. Brito, um baita artista, especializado em colagens, que trabalhou com imagens que também estão em domínio público. Por exemplo, em culturas em que a leitura é feita da esquerda para direita, como o japonês e o árabe, nossa edição traz tanto o padrão ocidental, na tradução, quanto o padrão “contrário”, no texto original. Uma novidade no Brasil.
Na coleção, todos os textos são de domínio público. Mas isso não significa que estão em domínio do público. De nada adianta liberar os originais se eles não estiverem bem-traduzidos, bem-diagramados e disponíveis gratuitamente no país. Este é o objetivo do Literatura Livre.
Dos 15 livros desta coleção, qual seu maior motivo de orgulho?
Como fã, é o 1984. Meu livro da vida. Um orgulho estar entregando uma edição para todo mundo gratuitamente, e ainda poder traduzir. Fiz um esforço grande ali. Como editor, acho que Hōjōki e o Livro do Tigre e do Raposo. Dois livros que, mercadologicamente, nunca existiram aqui no Brasil sem um projeto como esse, da Mojo e do Sesc, pois não têm alcance editorial e mercadológico para serem publicados por uma editora tradicional.
Este projeto traz esse tipo de oportunidade: entregar matérias de uma riqueza muito grande, histórica e cultural que, de outra maneira, nunca seriam lidas aqui.