Dona Anicide Dona Anicide. Foto: Oxalá Produções/Divulgação

Review: Em álbum póstumo, umbigada de Dona Anicide é eternizada com louvor

Jota Wagner
Por Jota Wagner

“O resgate das composições de Dona Anicide representa mais um gol de placa dos que lutam contra o apagamento histórico da música brasileira”

“O senhor me dá licença, que agora eu vou cantar”, manda Dona Anicide Toledo na abertura de seu álbum, Dona Anicide, lançado pela gravadora Diadorim em maio de 2024, com arranjos de Juçara Marçal e Anelis Assumpção e produção de Fejuca. Já começa errado. Afinal, são os “senhores” quem deveriam pedir licença para ouvi-la cantar. Os senhores que, há séculos atrás, sequestraram e trouxeram ao interior de São Paulo milhares de homens e mulheres da etnia bantu para trabalho escravo em condições apavorantes.

Os bantu, aliás, povoaram o Brasil de norte a sul e trouxeram, junto com seu povo, desde a tradição musical que deu a origem à umbigada, movimento do qual Dona Anicide Toledo é mestra, até a organização social dos quilombos.

O resgate das composições de Dona Anicide representa mais um gol de placa dos que lutam contra o apagamento histórico e trabalham para preencher a escassez de documentação da música tradicional brasileira. Pois não teve umbigo que fizesse frente às barrigadas sonoras da mulher. A rainha, nascida em 1933 (e falecida com 90 anos de idade, em julho do ano passado), não se conformou com a tradição ancestral de seu povo, que reservava às mulheres apenas o direito de dançar a umbigada. Chegou junto do Mestre Plinio, que, para surpresa dos batuqueiros do clube negro 13 de Maio, na cidade de Piracicaba/SP, autorizou-a cantar. Ouviram, então, a primeira mulher a comandar uma umbigada em toda a sua história conhecida.

Se tornou a primeira e grande rainha dos cântigos da umbigada, transmitida através da tradição oral ou criada de improviso, em meio às rodas de dança. Trazem consigo uma poesia poderosa, com força de lava vulcânica, desde libelos profundos de sofrimento, como “mamãe quero contar desse meu padecimento, ‘cabou tudo’ meu reforço, ando remando com o tempo” (Padecimento), até versos profundos e ácidos, como “não canto para me exibir, eu canto é para me alegrar” (Ai Moreno, Ai Morena).

O álbum conta com 15 músicas resgatadas do repertório da artista, sendo 13 cantadas pela própria Dona Anicide, e duas com participação de Juçara Marçal e Anelis Assumpção, que também foram responsáveis pelos arranjos de cordas e sopros de algumas da músicas. E ficaram lindas que só. O restante respeita o padrão original das canções, somente com a voz da mestra e os batuques, muito bem captados por Fejuca. O resultado é um disco que consegue nos apresentar o tamanho da riqueza desta cultura, dado o respeito com que foi tratado.

Mais uma figura foi devidamente registrada e eternizada, graças ao trabalho da equipe responsável por Dona Anicide. E o Brasil ganha uma ótima porta de acesso a um conhecimento antes restrito ao povo das festas da região do médio Tietê.

À Dona Anicide, pedimos licença para escutar este incrível disco, para sempre.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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