Felipe Vassão Felipe Vassão. Foto: Divulgação

“Nós já viramos ciborgues”, diz produtor de Emicida e Junior Lima

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Felipe Vassão fala sobre Inteligência Artificial, novas tecnologias e o que mudou no mercado musical em três décadas

Felipe Vassão tem duas caras. Uma, conhecida por quase 300 mil seguidores no Instagram. A do malucão barbudo que explica, em vídeos divertidos, bem editados e simples, assuntos complexos do mundo da música e da tecnologia. “Tenho certa obsessão em simplificar temas complexos”, me conta direto de seu estúdio, onde discorre sobre “cérebros terceirizados”, Inteligência Artificial, shows de grandes artistas e produção musical.

Sim, porque a outra cara de Vassão, conhecida no mundo da música, é a de produtor musical com 30 anos de estrada. Atualmente, participa do lançamento do disco solo do Junior Lima (aquele, o “sandyjunior”), já trabalhou com Pabllo Vittar, Liniker, Francisco, El Hombre e é responsável pelo sensacional AmarElo, álbum divisor de águas de Emicida, pelo qual chegou a ganhar um Grammy Latino.

Assim como seus colegas, Felipe vive em um mundo de transformações tecnológicas tão recorrentes, que chegam a saturar. É ferramenta mágica sendo lançada, uma atrás da outra, sempre virando o universo musical das pessoas de ponta-cabeça. Em um papo cara a cara (“telecineticamente” falando, já que conversamos virtualmente), ele nos conta suas impressões sobre como tudo afeta tanto a vida dos profissionais da música quanto a dos seus apaixonados ouvintes.

Seja através de um novo álbum, ou com suas didáticas pílulas no Instagram, Felipe Vassão tem muito a nos contar. Vem com a gente!

Jota Wagner: Você produz um conteúdo para redes sociais divertido, constante. Como é que você entrou nessa?

Felipe Vassão: Eu comecei a fazer um podcast sobre música há muito tempo atrás. As pessoas me pediam conteúdo sobre produção, mas eu queria fazer outra coisa: por que uma música merece ser produzida? Chamava-se Anatomia da Canção, e eu não consegui manter porque eu fazia no final de semana. Aí, veio pandemia, eu me separei, saí da minha produtora, entrei em uma depressão fodida, tive de tomar remédios controlados… Um momento de vida muito difícil.

Então voltei, primeiro tocando guitarra e violão, fui postando uns vídeos, comecei a contar umas histórias interessantes… Pensei: “deixa eu formar uma massa crítica aqui para poder trazer por meu podcast”. Então os vídeos começaram a criar vida própria. O podcast continua esquecido.

Eu gosto muito de contar histórias. Eu ia no cinema e contava a história dos filmes pro meu irmão quando era moleque. Eu tenho essa manha. 90% de tudo o que eu fiz na música foi para publicidade, então desenvolvi este modo xavequeiro. E eu comecei a ganhar dinheiro com esses vídeos. O dinheiro mais fácil que eu já ganhei na vida.

É uma coisa muito gostosa, eu gosto de criar essa narrativa. Eu tenho uma certa obsessão em simplificar conceitos complexos. Grande parte do meu trampo sempre foi esse. Nos vídeos, sinto que estou tentando sintetizar alguma informação que eu gostaria de ter tido quando eu tinha 15 anos e comecei a trabalhar com isso.

No mundo da produção musical, muitas ferramentas novas apareceram em 1992, quando você começou. Você tem medo da tecnologia?

Em momento nenhum eu senti medo da coisa. Eu sinto medo do impacto social que isso pode gerar além da minha bolha. Eu vi um vídeo muito bom esses dias sobre como a Inteligência Artificial vai substituir o nosso trabalho. Não vai ser uma guerra dos robôs. Vai ser uma disrupção financeira muito pesada na precariedade das condições de vida e, depois disso, uma espécie de nova ordem mundial. Vai ser uma coisa muito perversa, politicamente falando. Se ficar na mão da meia dúzia de pessoas que estão agora, como Elon Musk e Mark Zuckerberg, estamos fodidos.

Do ponto de vista específico de produção musical, tudo o que apareceu, achei incrível. A IA generativa de música, por mais impressionante que ela pareça, ela tem um limite. Se você colocar, por exemplo, um comando que a peça pra fazer um blues sujo do Mississipi com uma letra sobre gatinhos fofos, o resultado é convincentemente bom. Mesmo assim, aquilo não é uma música. É uma representação do que a Inteligência Artificial acha que é.

Eu gosto de usar uma analogia: uma coisa é você ter um terrário, em que você consegue trocar as plantas que estão lá. Se entrar uma praga. vai matar tudo… Eu sempre enxerguei música como a criação de um microcosmo. A IA faz uma foto deste terrário. Superlegal, igualzinho. Mas é uma foto. Você não consegue mexer ou tocar nas plantinhas que estão lá dentro.

Os sistemas de IA são todos uma caixa preta. A gente não fez a engenharia do que está ali dentro. A gente faz as perguntas do que queremos ouvir deles. São eles que estão bolando como vão responder. Isso é realmente assustador. Como é que estamos seguros?

Aí o pessoal fala: “vamos criar regulamentação e controle”. Mas eu fico ressabiado com esse papo, pois pode vir com uma restrição de quem pode mexer com isso, de quem pode criar. E a restrição vai sempre pender para quem tem dinheiro. Vai estar sempre na mão da Meta, do Google, e não de quem trabalha com open source. São os open source que sempre virão com uma visão mais humanista da ferramenta.

[Open source são os programas de computadores feitos com a “fonte aberta”. As linhas de programação, meio que a receita do bolo, são públicas, e qualquer outra pessoa pode ter acesso e modifica-las, melhorando seu funcionamento.]

Este gigantismo de opções de hoje em dia torna uma música ou um disco mais difíceis de serem produzidos?

É meio cansativo. Nos anos 40, 50, você distribuía todo mundo que ia tocar no estúdio, apontava o microfone em um lugar, tentando captar todas aquelas pessoas, e gravava o melhor possível. Isso era produzir fonogramas, até então. Você estava superlimitado a essa estética, a esse jeito de fazer. Mas, por outro lado, era superlibertador, porque bastava você escrever bem, colocar tudo mundo lá e pronto. Isso era fazer música. Hoje em dia você tem milhões de opções, e é muito fácil se sentir paralisado.

Voltando um pouco para a IA, e fazendo um paralelo com isso, teve tecnologias, como a compra de samples prontos em pacotes, para serem fatiados e tranfigurados em produções, que eu relutei muito em usar, apesar de criar meus próprios samples desde o início da minha carreira como produtor. Amigos usavam em 1996 e eu só comecei 20 anos depois. Realmente, é uma puta mão na roda. Mas aí é o que disse o Rick Beato. Qual a diferença entre empilhar um monte de samples prontos, um em cima do outro, gravar uma voz de merda e colocar no autotune, e pedir para uma Inteligência Artificial fazer tudo isso?

A IA é muito mais um catalizador desse momento que vivemos, de comoditização da arte. Eu me vejo em um lugar onde parece que só são feitas umas seis músicas no mundo. Só muda o nome e quem fez. Este estilo de sertanejo que fala de amor, celular e álcool, por exemplo. É a mesma estrutura harmônica e melódica. Se você inventa e faz algo diferente, a música não veste. Não passa pelo crivo [do mercado].

Esse mundo de hoje torna o produtor musical indispensável?

Acho que a ajuda a botar umas bolas no chão, mas também cria uns vícios no que é mercadologicamente viável e rentável, ficando na mão de meia dúzia que vão “dar certo”. Você lê os créditos da músicas e são as mesmas pessoas. Max Martin no pop, por exemplo, há literalmente 25 anos. Já era para ter entrado outra pessoa no lugar. É meio deprimente. Aí você vê outros artistas e produtores pululando, que são muito expressivos, mas falta musculatura. Falta dinheiro para aquilo acontecer e furar o ruído…

Mesmo com toda essa revolução tecnológica, a grana ainda manda muito?

“No fundo, fazer música é a parte mais fácil.” Frase do Emicida que sempre uso muito. Dá pra fazer em um laptop 90% do que eu faria. A grana está muito mais na divulgação. Como você vai botar gasolina nesse som para ele chegar nas pessoas?

AmarElo, de Emicida, foi produzido por Felipe Vassão

A cabeça do artista que chega no seu estúdio mudou?

Mudou sim. Existia uma coisa mais paternalista, do artista ser um cara desconectado do mundo. Era até interessante deixar essa pessoa dentro da bolha dela, para ela continuar criando e também ter mais controle sobre ela. Reza a lenda que Caetano Veloso, até os 40 anos, recebia mesada da gravadora. Beatles também. Existia essa noção do artista alienado. Com exceções, como David Bowie e Prince, que eram caras muito cientes do negócio que eles tinham.

Hoje em dia tem muito mais gente alinhada com isso. Artistas estão muito mais preocupados com o business da coisa, o que acaba afetando, artisticamente. Uma faca de dois gumes: eles têm muito mais noção do que eles têm, mas ao mesmo tempo, isso acaba fazendo eles tomarem decisões que não são muito legais para a música.

Qual o pior tipo de artista para produzir?

Cara, acho que é o artista inseguro e desconfiado. A principal coisa que eu tento criar, quando estou com alguém, é um ambiente de segurança. É muito mais terapia do que música.  Um ambiente em que a pessoa se sinta confiante o suficiente para errar bastante. Porque ninguém acerta todas. Se a pessoa já entra no estúdio com o pé atrás, meio blindada, você não vai realmente conseguir entrar naquele mundo dela de um jeito natural. Vai ficar tudo meio postiço, meio mentira. Muita energia vai ser desperdiçada.

Que dica você daria para um artista que está começando agora e vai entrar em estúdio?

Pode parecer papo de coach jacu da internet, mas seria a pergunta: aquilo é verdadeiro para você? Você está fazendo a escolha de um caminho que vai ser a sua vida. Se isso que você está investindo é uma pantomima, você está fodido. Vai ter de ficar fingindo para o resto da vida e vai ter, sobretudo, as consequências de saúde mental que pode ter.

Se aquilo é verdadeiro para você, vai contaminar os outros. Faça um trabalho de saber o que você está realmente buscando. Qual seu motivador? E não há motivador certo ou errado. Você só tem de estar de acordo com aquilo que está buscando.

Se o cara entra nessa para “se dar bem com as minas”, um grande motivador de muita gente, e realmente assumir isso, viver esse credo, está ótimo. Vai lá e faz. Se o motivo é “ganhar dinheiro” e você não tem problemas com o tipo de concessão que terá de fazer, beleza. Mas se você ficar no meio termo, em um lugar que é mentira para você, ninguém vai comprar sua ideia. Nem quem vai te produzir, nem quem vai te agenciar, e nem quem vai ouvir.

Boa parte de tudo o que estamos falando aqui pode ser levada para os palcos. Qual sua visão sobre os grandes shows, com tanta tecnologia envolvida?

Eu gosto de acreditar no que eu estou vendo. Uma coisa muito complicada hoje em dia é que estão afinando voz nos shows. Virou padrão da indústria. É o novo padrão e todos precisam assumir isso, abrir o jogo. É a mesma coisa das indústrias de moda e de beauty, em que os anúncios são tratados com Photoshop. Ninguém é aquilo, aquele ser perfeito.

No show, ninguém é aquele artista perfeito, que faz aquela performance impecável, embora tenham alguns que consigam. Vi a Florence and the Machine no MITA. Nem é uma artista que eu pago pau, mas o show foi impecável. Então, saí me perguntando: será que eles afinam ela?

Já o show da Haim, que foi no mesmo dia, dava para ver que era real. Que tinha erros. E você tem uma conexão muito mais verdadeira com esta pessoa, que está ali, “pelada”, do que alguém superproduzido.

Mas é um reflexo da vida que a gente leva. Nós já viramos ciborgues. Já temos bastante fricção com nosso “cérebro extra”. A gente já está terceirizando boa parte do nosso cérebro para esta merdinha [mostra o telefone celular]. Já somos até telecinéticos hoje em dia. Falar com o outro, por WhatsApp, é telecinético. É uma transmissão de pensamento via celular. Estamos vivendo o bom e o ruim desta expansão digital. Quem nasceu no mundo analógico está vendo tudo virar de ponta-cabeça.

Por isso, não tenho medo. Já vi tanta coisa acontecer nessa vida…

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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